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Por dentro do âmbar

Opinião  »  2010-06-25  »  Né Ladeiras

Seis meses depois de todos os astros boreais, a palavra celebrou-se em chamas sobre o silêncio da casa. No recanto da sala visiono o que quero levar e o que posso deixar. As janelas de vidro duplo deixam entrar uma claridade ainda trémula, que surge da tundra. Foi longa esta permanência, talvez a maior que vivi. O norte possível, o mais norte de tudo, a extensão de beleza e silêncio, como a madeira que se combina com o fogo, encerrou este ciclo lunar. A caminho de outros caminhos de ouro, arriscando recifes e outras amplitudes, vou-me desabitando da metade da cama, das escadas de madeira, da entrada tapada pela neve, do adeus (pre)destinado, do ritual dos fiordes, do reflexo (so)lícito, das portas que se fecharam e se abriram à passagem de tanta esperança. A paisagem matizada, sobre o pano branco e macio, deu-me a noção do traço. Posso premeditar lugares e sortes até fazer vontade à vontade de chegar. Posso soltar-me das memórias mais dóceis, sobreviver ao inferno raso da nostalgia, criar texturas diversas de palavras consoante o voo e o tempo. Em qualquer cidade posso resistir às sombras e feridas que teimam em não sarar. Se eu quiser posso ser árvore no concreto e multiplicar-me nos céus. Se eu deixar, a luz pode descer sobre mim e descobrir qualquer rosto adormecido ou acordado. Posso devolver-me ao silêncio como um grão de pólen que se desfaz, sem paciência gasta, sem cair em dias vazios, sem arrastar o mundo para o luto, sem ter medo de dormir. Posso construir-me, asas tranquilas, sobre a busca extensa, porque nada acaba aqui. Há mais exílios voluntários, névoas com voz de reza, sílabas preciosas e dores reencarnadas com um fim. Sou refúgio e clarão, escombro e raiz, desequilíbrio e consistência. Há um Graal, o absoluto, uma nova alegria de dentro, dialectos que anunciam a passagem transparente e línguas que falam de um tempo intermédio. Há anjos renascidos que implodem no universo e estrelas deslumbrantes que invadem angústias num fenómeno natural. O medo é superado pela entrega. Um salto sobre os muros do real e chega-se ao trilho. Vida devolvida, nada a temer. Dentro da minha garganta surgem palavras cintilantes de poetas e das florestas de coníferas a respiração pausada. Dentro do âmbar expirado há mundos de fungos e insectos. Olham-me de novo, eu mais atenta que eles. O lugar onde tudo se passa em câmara lenta, onde cada objecto é reencontrado sem o menor esforço, nem distracções perturbadoras. O sábio disse que ”os impactos de amor não são poesia”*. Não sabia. Essa forma de pernoitar em despensas casuais não fez mais do que me apertar o coração contra a parede. Chegar atrasada às lágrimas, permanecer roda de um moinho de vento, ser passageira em trânsito no fim do mundo até poder dançar com estátuas que só sentem através de mim. À lama e à luz agradeço. E se me aperta uma aflição de saber que o tempo não pára nem vai esperar iço as velas remendadas da minha alma navegante, que não se vão romper ainda. Olho para a terra a 36 mil pés de altitude. Desconheço outra perspectiva senão no momento de levantar voo. Há penas cinzentas no chão do país dos espelhos. A neve regressa sobre os refugiados que partiram de nenhures, como eu. Recorda-lhes as cortinas esvoaçantes das janelas pintadas de branco e o som do violoncelo que sai delas. Inaudível é a voz fatigada dos exilados e as gotas de rosé com que brindam as recordações. Desprendo-me do cinto de segurança, peço uma água mineral e um café enquanto me preparo para as últimas folhas do caderno preto. A 36 mil pés de altitude do que conheço as palavras abstêm-se de desconversar. Faço um círculo mágico para as canções brilharem no escuro e se estenderem sobre os pontos descobertos e quebráveis. Seguro a beleza do âmbar entre as minhas mãos. Posso olhar para mim agora.

* excerto retirado de Conclusão de Carlos Drummond de Andrade in Fazendeiro do Ar, 1969
 

Música: Came So Far for Beauty - Leonard Cohen (Recent Songs, 1979)

 

 

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