Caminho de Abril - maria augusta torcato
Olho para o meu caminho e fico contente. Acho mesmo que fiz o caminho de Abril. O caminho que Abril representa. No entanto, a realidade atual e os desafios diários levam-me a desejar muito que este caminho não seja esquecido, não por querer que ele se repita, mas para não nos darmos conta, quase sem tempo de manteiga nos dentes, que estamos, outra vez, lá muito atrás e há que fazer de novo o caminho com tudo o que isso implica e que hoje seria incompreensível e inaceitável.
Em 1968, duas crianças, uma a caminho dos sete anos e outra com dois ou três meses, viam-se em cima de uma manta, à sombra e sob a proteção de um magnífico sobreiro, que projetava, no campo de arroz adjacente que se espraiava, um domínio inquestionável.
Nas quadrículas verdes alagadas, um rancho de mulheres e homens fazia tarefas de monda ou outra coisa. Quase só se vislumbrava o seu dorso, dobrado para a frente, mas uma mãe, atenta e cuidadosa, dirigia amiúde os seus olhos para aquele lado do campo onde estava o sobreiro e sob a sua proteção as suas duas crianças. Eram as únicas crianças que acompanhavam aquele grupo de homens e mulheres do Alentejo e que tinha vindo trabalhar nos campos de arroz do Ribatejo. E aquela menina e aquele menino estavam ali, porque o menino tinha tão pouco tempo de nascido, que precisava mamar e, por isso, a irmã, mais velha, teve também de ir para cuidar dele enquanto os pais trabalhavam. Quando ele chorava, que era a forma de dizer que tinha fome, a menina agarrava nele com muito cuidado, e com muito medo de cair e o deixar cair, equilibrava-se nos cômoros, ou seja, nos paredões estreitos de terra que separavam as quadrículas de arroz e levava-o à mãe, atascada em água até por cima dos joelhos, que lhe dava o seu peito para o alimentar e tranquilizar. De seguida, lá voltavam os dois para a sombra da generosa árvore. Não havia brinquedos, para o pequenino, havia uma chucha de pano que conservava um miolo de pão, embebido em mel ou açúcar louro e o ia entretendo e enganando. O que é doce nunca amargou.
Ao fim do dia, quando o sol já se recolhia, o rancho voltava, atravessava uma ponte, a água corria no rio, indiferente às condições de vida daquela gente. O armazém erguia-se numa das margens, depois da estrada. Os colchões de palha estavam dispostas em correnteza, no chão. Aí o cansaço esquecia-se e permitia um alento para o dia seguinte. E tudo recomeçava. Creio que não se aspirava a grandes coisas. Não se conheciam grandes coisas. Conhecia-se o que se vivia e a vida era assim. Ninguém sente falta do que não conhece, mas percebe-se que há diferenças entre as pessoas. Há pessoas que estão nas suas terras, nas suas casas, as crianças brincam e parece que há uma ordem muito desordenada. Na cabeça e coração de alguns daquele rancho, haverá sonhos, desejos, e esperança de que estes se realizem. Isso justificará todo o esforço, todo o sacrifício, todas as dificuldades. Justificará aquela existência e construirá o futuro. Um futuro…
Foi a única vez que esta menina acompanhou os pais nestas pequenas migrações. Precisavam dela para cuidar do irmão. Da segunda vez, a última migração dos pais, foi o irmão, com seis meses, mas a menina tinha entrado na escola em outubro e, por isso, ficou com os avós.
Em janeiro de 1969, o desejo de se querer uma vida mais estável e talvez o tal futuro, pelo menos para as crianças, fez com que estes pais não regressassem à sua terra e trouxessem para junto de si a filha, que foi transferida de escola.
O que está entre o princípio do caminho e o aqui e agora é muito. Tanto, que não dá para contar. Mas pode imaginar-se. Em 1974, o Abril permitiu uma grande ajuda no caminho. Posso até afirmar que abriu uma enorme e longa estrada. E esta estrada tem sido percorrida por mim e por muitas crianças que, como eu, no início nem saberiam o que era uma estrada. E as crianças destas crianças já puderam e podem ser crianças.
Mas esse caminho de Abril precisa ser cuidado, parece que vai ficando esburacado e a estrada pode transformar-se em carreiro. Continuam a existir muitas pessoas que não vivem, apenas sobrevivem. Não se pode perder a consciência do que somos, do que queremos e como queremos. Não se podem perder os sonhos. Tem de haver liberdade para se ser, para se estar e para sonhar. Têm de se garantir oportunidades a todos. Sabemos que é difícil, mas é responsabilidade de todos nós ajudarmos a construir uma sociedade mais justa, equilibrada e onde, independentemente do berço, todos se podem afirmar e realizar, desde que o queiram e lhes deem azo à sua própria construção. Porque não basta existir. É preciso pensar-se e ter-se consciência dessa existência. Ser-se senhor dessa existência. O 25 de Abril deu-me isso! Construí-me no caminho de Abril.
Caminho de Abril - maria augusta torcato
Olho para o meu caminho e fico contente. Acho mesmo que fiz o caminho de Abril. O caminho que Abril representa. No entanto, a realidade atual e os desafios diários levam-me a desejar muito que este caminho não seja esquecido, não por querer que ele se repita, mas para não nos darmos conta, quase sem tempo de manteiga nos dentes, que estamos, outra vez, lá muito atrás e há que fazer de novo o caminho com tudo o que isso implica e que hoje seria incompreensível e inaceitável.
Em 1968, duas crianças, uma a caminho dos sete anos e outra com dois ou três meses, viam-se em cima de uma manta, à sombra e sob a proteção de um magnífico sobreiro, que projetava, no campo de arroz adjacente que se espraiava, um domínio inquestionável.
Nas quadrículas verdes alagadas, um rancho de mulheres e homens fazia tarefas de monda ou outra coisa. Quase só se vislumbrava o seu dorso, dobrado para a frente, mas uma mãe, atenta e cuidadosa, dirigia amiúde os seus olhos para aquele lado do campo onde estava o sobreiro e sob a sua proteção as suas duas crianças. Eram as únicas crianças que acompanhavam aquele grupo de homens e mulheres do Alentejo e que tinha vindo trabalhar nos campos de arroz do Ribatejo. E aquela menina e aquele menino estavam ali, porque o menino tinha tão pouco tempo de nascido, que precisava mamar e, por isso, a irmã, mais velha, teve também de ir para cuidar dele enquanto os pais trabalhavam. Quando ele chorava, que era a forma de dizer que tinha fome, a menina agarrava nele com muito cuidado, e com muito medo de cair e o deixar cair, equilibrava-se nos cômoros, ou seja, nos paredões estreitos de terra que separavam as quadrículas de arroz e levava-o à mãe, atascada em água até por cima dos joelhos, que lhe dava o seu peito para o alimentar e tranquilizar. De seguida, lá voltavam os dois para a sombra da generosa árvore. Não havia brinquedos, para o pequenino, havia uma chucha de pano que conservava um miolo de pão, embebido em mel ou açúcar louro e o ia entretendo e enganando. O que é doce nunca amargou.
Ao fim do dia, quando o sol já se recolhia, o rancho voltava, atravessava uma ponte, a água corria no rio, indiferente às condições de vida daquela gente. O armazém erguia-se numa das margens, depois da estrada. Os colchões de palha estavam dispostas em correnteza, no chão. Aí o cansaço esquecia-se e permitia um alento para o dia seguinte. E tudo recomeçava. Creio que não se aspirava a grandes coisas. Não se conheciam grandes coisas. Conhecia-se o que se vivia e a vida era assim. Ninguém sente falta do que não conhece, mas percebe-se que há diferenças entre as pessoas. Há pessoas que estão nas suas terras, nas suas casas, as crianças brincam e parece que há uma ordem muito desordenada. Na cabeça e coração de alguns daquele rancho, haverá sonhos, desejos, e esperança de que estes se realizem. Isso justificará todo o esforço, todo o sacrifício, todas as dificuldades. Justificará aquela existência e construirá o futuro. Um futuro…
Foi a única vez que esta menina acompanhou os pais nestas pequenas migrações. Precisavam dela para cuidar do irmão. Da segunda vez, a última migração dos pais, foi o irmão, com seis meses, mas a menina tinha entrado na escola em outubro e, por isso, ficou com os avós.
Em janeiro de 1969, o desejo de se querer uma vida mais estável e talvez o tal futuro, pelo menos para as crianças, fez com que estes pais não regressassem à sua terra e trouxessem para junto de si a filha, que foi transferida de escola.
O que está entre o princípio do caminho e o aqui e agora é muito. Tanto, que não dá para contar. Mas pode imaginar-se. Em 1974, o Abril permitiu uma grande ajuda no caminho. Posso até afirmar que abriu uma enorme e longa estrada. E esta estrada tem sido percorrida por mim e por muitas crianças que, como eu, no início nem saberiam o que era uma estrada. E as crianças destas crianças já puderam e podem ser crianças.
Mas esse caminho de Abril precisa ser cuidado, parece que vai ficando esburacado e a estrada pode transformar-se em carreiro. Continuam a existir muitas pessoas que não vivem, apenas sobrevivem. Não se pode perder a consciência do que somos, do que queremos e como queremos. Não se podem perder os sonhos. Tem de haver liberdade para se ser, para se estar e para sonhar. Têm de se garantir oportunidades a todos. Sabemos que é difícil, mas é responsabilidade de todos nós ajudarmos a construir uma sociedade mais justa, equilibrada e onde, independentemente do berço, todos se podem afirmar e realizar, desde que o queiram e lhes deem azo à sua própria construção. Porque não basta existir. É preciso pensar-se e ter-se consciência dessa existência. Ser-se senhor dessa existência. O 25 de Abril deu-me isso! Construí-me no caminho de Abril.
![]() Gisèle Pelicot vive e cresceu em França. Tem 71 anos. Casou-se aos 20 anos de idade com Dominique Pelicot, de 72 anos, hoje reformado. Teve dois filhos. Gisèle não sabia que a pessoa que escolheu para estar ao seu lado ao longo da vida a repudiava ao ponto de não suportar a ideia de não lhe fazer mal, tudo isto em segredo e com a ajuda de outros homens, que, como ele, viviam vidas aparentemente, parcialmente e eticamente comuns. |
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![]() Deveria seguir-se a demolição do prédio que foi construído em cima do rio há mais de cinquenta anos e a libertação de terrenos junto da fábrica velha Estamos em tempo de cheias no nosso Rio Almonda. |
![]() Enquanto penso em como arrancar com este texto, só consigo imaginar o fartote que Joana Marques, humorista, faria com esta notícia. Tivesse eu jeito para piadas e poderia alvitrar já aqui duas ou três larachas, envolvendo papel higiénico e lavagem de honra, que a responsável pelo podcast Extremamente Desagradável faria com este assunto. |
![]() Chegou o ano do eleitorado concelhio, no sistema constitucional democrático em que vivemos, dizer da sua opinião sobre a política autárquica a que a gestão do município o sujeitou. O Partido Socialista governa desde as eleições de 12 de Dezembro de 1993, com duas figuras que se mantiveram na presidência, António Manuel de Oliveira Rodrigues (1994-2013), Pedro Paulo Ramos Ferreira (2013-2025), com o reforço deste último ter sido vice-presidente do primeiro nos seus três mandatos. |
![]() Coloquemos a questão: O que se está a passar no mundo? Factualmente, temos, para além da tragédia do Médio Oriente, a invasão russa da Ucrânia, o sólido crescimento internacional do poder chinês, o fenómeno Donald Trump e a periclitante saúde das democracias europeias. |
![]() Nos últimos dias do ano veio a revelação da descoberta de mais um trilho de pegadas de dinossauros na Serra de Aire. Neste canto do mundo, outras vidas que aqui andaram, foram deixando involuntariamente o seu rasto e na viagem dos tempos chegaram-se a nós e o passado encontra-se com o presente. |
![]() É um banco, talvez, feliz! Era uma vez um banco. Não. É um banco e um banco, talvez, feliz! E não. Não é um banco dos que nos desassossegam pelo que nos custam e cobram, mas dos que nos permitem sossegar, descansar. |
![]() O milagre – a eventual vitória de Kamala Harris nas eleições norte-americanas – esteve longe, muito longe, de acontecer. Os americanos escolheram em consciência e disseram claramente o que queriam. Não votaram enganados ou iludidos; escolheram o pior porque queriam o pior. |
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Gisèle Pelicot é uma mulher comum - joão ribeiro e raquel batista |
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Fantoche... |
» 2025-03-12
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Ferreira... renovado |