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O contexto nacional

1994: o regime de Cavaco a dar as últimas, o país cansado de uma paisagem política de quase dez anos. Semana sim, semana sim, “O Independente” fazia tremer o Governo com as fadistices de um Paulo Portas ainda jovem e a maquinar, por trás, o afundamento do cavaquismo e a preparar, a longo prazo, um projecto político próprio. Diga-se com justiça: “O Independente” não era só Portas e o tiro ao boneco no Cavaco, era também um projecto jornalístico arrojado e livre, ousado e revolucionário na forma e na linguagem, tendo por trás dessa sua outra natureza o génio de Miguel Esteves Cardoso. Como jornal, assumia-se como conservador na política. Mas o público consumidor de “O Independente” era maioritariamente de esquerda, que o lia religiosa e discretamente. As esquerdas tinham pena e inveja de não ter um jornal assim, ousado e livre, desbocado e criativo. Mas havia ainda mais, nesse breve fervilhar da imprensa portuguesa: acabara de ser fundado o “Público”, outro tipo de jornal e outro conceito, e Portugal passava a contar, finalmente, com um jornal de qualidade à semelhança dos grandes jornais do mundo como “NYT”, o “El País”, “La repubblica”, entre outros. A invenção de Vicente Jorge Silva fascinou o jornalismo português, os jornalistas e os leitores, de tal modo que nunca mais o jornalismo em Portugal foi a mesma coisa. O “Público” inicial era um grande produto, um grande jornal, vê-se agora melhor, uma criação demasiado grande para um país como Portugal. Só possível, evidentemente, porque Vicente Jorge Silva tinha conseguido convencer Belmiro de Azevedo a abrir os cordões à bolsa e a sustentar um empreendimento que lhe traria prestígio entre as classe médias e ilustradas, e um reconhecimento social algo acima da imagem de “grande merceeiro”. O “Público” foi uma espécie de imposto revolucionário pago pelo homem do Continente.

As águas turvas torrejanas

Localmente, o panorama jornalístico era deprimente: enquanto em Tomar existiam três jornais (O Templário, a Cidade de Tomar e O Nabão), no Entroncamento dois (o Notícias e o Jornal do Entroncamento), em Abrantes três ou quatro (o Jornal de Abrantes, o Primeira Linha, a Nova Aliança), em Santarém vários (o Correio, o Ribatejo, o Mirante em ascensão), em Torres Novas publicava-se apenas “O Almonda”, um velho semanário da igreja, com uma longa história de alinhamento situacionista, conservador nos hábitos e demasiado cinzento. É certo que havia também “O Riachense”, mas nessa altura o seu pendor bairrista, quase étnico (a metáfora literária “a escrita da terra” ra esclarecedora), fazia dele não um projecto jornalístico apenas, mas uma trincheira de pequenas lutas e obsessões anti-torrejanas, o que o impedia de se configurar como alternativa efectiva ao ambiente pastoso dominado pelo semanário único, até pelas limitações da periodicidade, já muito lenta para a velocidade do tempo. Diga-se, no entanto, que havia no jornal de Riachos gente que sabia da poda e que, de quando em vez, produzia boas edições e boas iniciativas editoriais, mas, nessa altura, o fervor bairrista era mais forte que a vontade de se apostar num projecto eminentemente informativo e jornalístico, até porque os tempos não estavam maduros para esse objectivo. Mas, voltando a Torres Novas, a situação de jornal único não era conforme a tradição e os pergaminhos torrejanos na história do jornalismo na região: em Torres Novas tinham sido publicados alguns dos títulos mais antigos da imprensa do distrito, no final do séc. XIX, e as primeiras décadas do seguinte foram férteis na criação de jornais, tendo-se sucedido títulos variados na onda dos momentos políticos e expressões ideológicas de cada tempo.

Com o encerramento do velho “Jornal Torrejano”, em 1915, surgiria pela mão de Artur Gonçalves “O Torrejano”, que duraria até 1918, ano em que foi mandado encerrar pelo Governo Civil. Nesse ano, surge “O Almonda”, que andaria sozinho até aos anos 30, quando “A Renascença” tentou reunir as energias restantes do velho republicanismo, juntando-se ao projecto outras forças da oposição nascente ao Estado Novo, que não deixaria ter, como se previa, vida longa ao novo semanário. Ficou sozinho “O Almonda” e sozinho atravessou o período áureo do regime autoritário de Salazar, sempre alinhado à política salazarista em termos editorais, mas dando espaço aqui e ali, sobretudo a partir dos anos 60 (depois da morte do Carlos de Azevedo Mendes), às expressões e vozes conotadas com as novas ideias e as correntes de oposição. A seguir ao 25 de Abril, surgiu “A Forja”, mas o seu alinhamento ideológico muito marcado às forças revolucionárias, e o facto de pretender ser um jornal regional quando a situação ainda não estava madura para tal empreendimento, ditou que o semanário dirigido pelo ex-padre Francisco Nuno não cumprisse mais que meia dúzia de anos. “O Almonda” ficaria sozinho em Torres Novas mais cerca de 15 anos, navegando tranquilamente sem alternativas para os leitores de jornais locais.

Um novo jornal, ideia sempre adiada

A ideia de um novo jornal para Torres Novas, que rompesse com a estagnação e suscitasse o debate público dos assuntos colectivos de uma cidade em ebulição, ainda que contida, e que desse voz a uma opinião pública que se pressentia dinâmica e muito diversificada, dada a concentração de uma enorme quantidade de quadros médios (professores, médicos, advogados, empresários, estudantes universitários) e o seu potencial como massa crítica, não era uma ideia nova. Falava-se disso de vez em quando há quase uma década, mas nunca ninguém havia passado das conversas à acção.

Comecei, pois, a entabular conversações informais com pessoas como José Ribeiro Sineiro, à guisa de conselheiro acerca da oportunidade do projecto, com Carlos Tomé, amante das letras e dos jornais e, sobretudo e em primeiro lugar, com Joaquim da Silva Lopes, já então com uma vasta experiência de colaboração e prática jornalísticas, pois havia sido correspondente de um jornal nacional e director-adjunto de O Riachense, entre outras experiências. As conversas esbarravam sempre na questão do financiamento e da maneira de reunir recursos para levar por diante a aventura, pois todas as avaliações apontavam no sentido de dificuldades extremas para um jornal fora da órbita da igreja ou de um grupo económico. E ainda estava na mente de alguns a experiência traumática de “A Forja”, um processo doloroso para muitos daqueles com quem se falava no projecto de um novo jornal.

À procura de uma espécie de Belmiro

Alguém alvitrou a possibilidade de José Maria Zuzarte Reis poder vir a interessar-se por ajudar um projecto desta natureza, tal como Belmiro de Azevedo fizera ao financiar a criação do “Público”. A imprensa era, para a classe empresarial da altura, um mundo atractivo e podia ser que, a nível local, se passasse algo de parecido. Porquê José Maria Zuzarte Reis? Em 1994, este conhecido industrial torrejano já tinha um enorme rasto de acções mecenáticas: desde 1990 que era um forte apoiante do Clube Desportivo de Torres Novas e, dizia-se, apoiava até as candidaturas partidárias à Câmara, de diversos emblemas, e era um homem afável e acessível. Eu já o conhecia bem por residir em frente à sua destilaria do largo do Lamego, onde é a Emotion, e com ele mantinha amizade desde os tempos do Desportivo (eu próprio fiz parte de duas direcções onde ele também estava) e das Comemorações do Foral (que ele também ajudou), e por ali passávamos longas conversas sobre tudo e mais alguma coisa, ao sabor das cigarradas de que tantos gostávamos (tínhamos em comum até o SG Ventil), quer a olhar para as águas do rio, quer num pequeno gabinete que ele tinha na destilaria, um cubículo com janelas de vidro a dar para os depósitos onde os camiões vinham carregar.

As primeiras abordagens foram promissoras e o nosso “Belmiro” até se mostrou interessado e curioso pelo projecto e admitiu fortemente a hipótese de ajudar. De conversa em conversa, chegámos à situação do “mas quanto é preciso?”. Juntamente com Pedro Silva, proprietário da Digital Texto, que entretanto já fora abordado para o projecto, lavrámos numa folha A4 aquilo que seriam as despesas de uma ano de funcionamento, cujo financiamento seria uma espécie de ajuda para que o jornal pudesse nascer, sem sobressaltos, sem explicarmos muito bem a natureza da eventual ajuda do empresário torrejano: como pagaríamos depois o empréstimo, se o dinheiro não fosse dado. O montante apresentado incluía basicamente as despesa de paginação e impressão e alguns gastos correntes, e nem um escudo de qualquer retribuição a quem quer que fosse.

Acontece que, depois da entrega dessa folha ao nosso empresário amigo, nunca mais houve um sinal e uma resposta da parte dele. Não me lembro e pouco importa se, inclusivamente, ele não terá dito, já passados muitos meses, que não queria embarcar naquela aventura. Desconfio que ele achou aquilo pouco credível, porque na verdade o montante em causa, umas centenas de contos (mil e tal?) eram amendoins. Mas nós não tínhamos, em 1994, dinheiro para amendoins. Ou então, achou os “conspiradores” demasiado chegados à esquerda da esquerda, ele que era um homem forte do PS torrejano, amigo de Almeida Santos e de Mário Soares.

Como fazer um projecto pluralista?

Por falar em esquerda, punha-se a questão da credibilidade do futuro jornal em termos de dever obedecer e pautar-se por valores de pluralismo e de abertura a todas as tendências e correntes de pensamento. Diga-se que, para o par inicial, eu próprio e o Joaquim Lopes, o objectivo central era criarmos um jornal verdadeiramente pluralista e democrático, um projecto jornalístico assente na qualidade e no rigor informativo. Não havia um projecto ou uma intenção política na aventura, era o puro prazer, desejo e entusiasmo de fazer, localmente, um bom jornal. Acontece que, tanto ele como eu, tal como os outros amigos que fomos juntando à nossa volta, era tudo gente conotada com a esquerda e isso foi uma preocupação adicional que nos dificultava o desenvolvimento do projecto. Nós bem procurávamos, falávamos com este e aquele, mas nas áreas do PS e do PSD não havia gente activa no movimento cultural torrejano.

O PS, vergado por anos e anos de travessia do deserto, acabara de ganhar as eleições inesperadamente, mas ainda não estava em marcha o movimento de atracção, junto de personalidades públicas, que os anos de poder lhe iriam proporcionar. Do lado do PSD, o panorama não era melhor. O partido lambia feridas de uma derrota, nunca tinha tido qualquer influência no movimento cultural torrejano e, curiosamente, no que toca a jornais, acabava de sair de uma experiência desastrosa de tentar fundar um jornal regional em Santarém, um projecto que chegou a estar bastante adiantado, em meios e recursos, em ligação ao antigo governador civil, Pereira da Silva, e que depois deu em nada e ainda teve custos avultados.

Mas, na verdade, a situação era verdadeiramente outra: por essa entrada da década de 90, a esquerda mais à esquerda detinha ainda, em Torres Novas, uma hegemonia absoluta no que dizia respeito ao movimento cultural, uma herança dos tempos da militância revolucionária. Fora dessa área, e exceptuando obviamente um caso ou outro, não havia protagonistas de causas várias, opinion-makers, “autores” e activistas culturais que não se situassem, de alguma forma, nas franjas do PCP e dos antigos grupos esquerdistas ou que, tendo pertencido a essas famílias, arrastavam atrás de si uma fama que não os largava. Era esse o problema: por mais que procurássemos, não conseguíamos fabricar um ramalhete plural que retirasse ao novo jornal o estigma de “mais uma coisa dos comunistas”. E isso poderia ter custos do ponto de vista da viabilidade comercial do projecto: não teve, porque a realidade era mais promissora do que supúnhamos e as pessoas estavam mais abertas do que nós imaginávamos e sedentas de ter em Torres Novas um jornal diferente, aberto e plural, pautado por níveis de qualidade que respondessem às exigências de uma “classe média” torrejana numerosa e interessada pela intervenção cívica.

Coube-me estabelecer contactos pessoais com dirigentes locais do PSD da altura, no sentido de, num último esforço, arregimentar alguém daquela área para o projecto do jornal. E foi neste contexto que pudemos contar, entre os fundadores, com Jorge Cordeiro Simões, que tinha sido vereador e ainda era uma figura de referência dos social-democratas torrejanos. Mais ninguém se quis associar, uns cansados, outros desiludidos com uma derrota autárquica completamente fora das piores previsões. E mais não deu a saga em busca de personalidades e activistas da área “laranja”, embora posteriormente muitos se prestassem a colaborar desde logo enquanto colunistas, casos de Joaquim Venâncio, Pedro Ferreira Henriques, Ana Marta Mendes, entre outros. Mas apenas enquanto colunistas.

Feitas as contas ao processo, subscreveram o capital inicial da cooperativa, e portanto foram delas fundadores, Carlos Tomé, João Carlos Lopes, Leontina Lopes, Conceição Godinho, Joaquim da Silva Lopes, Vítor Godinho Maurício, Jorge Cordeiro Simões, António Mário Santos, Pedro Silva e José Ribeiro Sineiro: tirando o caso de Jorge Cordeiro Simões, estávamos na presença de um grupo onde havia ex-comunistas do PCP (o meu caso e o do António Mário, que foi várias vezes vereador comunista), de gente ligada na juventude à UDP (Carlos Tomé, que agora era vereador do PCP, Joaquim da Silva Lopes), ex-destacados militantes do MDP/CDE (caso do José Ribeiro Sineiro), tudo gente aparentada às várias esquerdas. Não era um jornal comunista (desse lado houve até as naturais desconfianças, porque Roma não paga lanches a dissidentes), mas assim de repente até parecia.

Em frente de mãos vazias

Não houve, decididamente e entretanto, mais notícias do nosso desejado mecenas. Decidiu-se avançar sem rede. Constituiu-se uma cooperativa, cada cooperante dos acima citados entrou com 20 contos e o montante arrecadado foi praticamente todo gasto nas despesas burocráticas de fundação da cooperativa e dos registos oficiais do novo jornal. No fim do processo não havia praticamente um tostão.

Na discussão o título, alinharam-se duas teses: uma defendia um título que recuperasse o património da imprensa e do jornalismo em Torres Novas, e nesse caso só podíamos recuperar o título do velho e prestigiado JORNAL TORREJANO. A outra parte defendia um título mais genérico e não localista, de modo a que o jornal pudesse ultrapassar facilmente as fronteiras locais em penetração comercial. Pensou-se que não seria a referência localista do título que impediria uma abrangência mais regional e optou-se pelo JORNAL TORREJANO.

Começou-se sem um centavo, verdadeiramente um centavo, na atarracada cozinha da antiga casa de Saúde, espaço que fazia parte, para arrumos, da Digital Texto, cujos gerentes, Pedro Silva e Vítor Maurício, estavam entre os cooperantes fundadores. Uma resma de papel A4, meia dúzia de canetas e a antiga máquina de escrever emprestada pela Leontina Lopes: assim começava o JORNAL TORREJANO, nestas condições e inteiramente escrito e produzido à custa de trabalho voluntário durante vários meses, até à contratação, a meio tempo, da Conceição Gomes, para o apoio administrativo. Da gráfica Almondina, como prémio pelo arrojo, e resultante da amizade de Manuel Lopes Inês, recebemos a possibilidade de imprimirmos o jornal uns três meses sem pagar de imediato, de modo a podermos constituir receitas para o passarmos a fazer regularmente, o que depressa aconteceu.


E foi assim que num dia de Setembro de 1994 estava nas bancas o “Jornal Torrejano”. A sua história, desde esse dia, fizeram-na e fazem-na todos os que nele trabalharam e trabalham, fizeram-na os leitores e os anunciantes, os seus cronistas e colaboradores, fizeram-na alguns que, de forma graciosa e competente, contribuíram para o desenvolvimento de um jornal regional que foi considerado dos melhores do país e que, neste tempo de dificuldades imensas para a imprensa de todo o mundo, teima em resistir.


João Carlos Lopes, 2014