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Carta Aberta às vítimas do genocidio social de 2009

Opinião  »  2009-02-12  »  Maria da Luz Lopes

Gostos não se discutem e sendo eu um homem a viver no centro do país sinto-me mais seduzido pelo verde do norte do que pela aridez amarelecida do sul. Sem preconceitos, opto pela rudez das paisagens, pelo esforço das suas gentes em trabalhar a terra nas íngremes encostas das serras, tanto em Invernos gelados como na canícula do Verão e, sobretudo, pela franqueza da linguagem que não deixa dúvidas nem supõe adornos metafóricos. São directos, incisivos e desprezam a sensibilidade puritana dos ouvidos de quem não os compreende.

Quem passar uma manhã pelo mercado do Bolhão sabe a que me refiro.

O permanente alarido de vozes, recheado de expressões do mais puro calão da língua portuguesa atinge o incauto e desprevenido passante como setas disparadas em todas as direcções, na desfesa do reduto que lhes dá esse direito. O direito à diferença.

Das bancas de pedra do peixe aos frescos lugares de venda de frutas e hortaliças até às coloridas estantes de flores, ressoam ordens: anda cá meu cabrão!; ecoam mandamentos: vai-te foder homem de Deus!; exprimem-se desejos: e se fosses pró caralho?; confirmam-se sentenças: puta que te pariu!

Contudo, este calão tabernáculo, analisado sem falsos pruridos de infestada moralidade que amiúde lavra pela sacristia, faz todo o sentido. Outros diálogos naquele filme seriam legendas trocadas.

Grassa por esse mundo fora uma onda de revolta sem paralelo desde os promórdios dos tempos e, para classificar o tsunami, cujo fim ninguém se apresenta para congeminar, deparamos com toda a ordem de adjectivos que pretendem qualificar, explicar e demonstrar o que para todos os desgraçados, varridos como destroços de praia em praia, em busca de porto seguro, é por demais evidente: estamos fodidos!

Podia escrever esta carta aberta com outro estado de espírito, outra linguagem, talvez até tentando desmontar as causas da nefasta situação, recorrendo às axiomáticas verdades dos deuses que ao longo dos séculos peroraram sobre : a ganância dos banqueiros, a avareza das elites e dos empresários, testemunhada na falta de escrúpulos, de carácter e da indiferença pela miséria alheia, o nepotismo dos governos, a inconsciência tresloucada dos gurus da finança, as seitas secretas que conspiram nas catacumbas do poder, o Vaticano e a própria Igreja tão afins de sinecuras e mordomias e por último, mas não menos importante, sobre o próprio Homem e da sua cada vez menor apetência por causas alheias.

Poderia até recorrer aos filósofos que, desde Séneca até aos nossos dias, mais coisa menos coisa, nos andam a dizer ” eu bem os avisei”. Dava um saltinho à Net, recolhia dados, compunha um ramalhete de sonantes vulgaridades sem me preocupar com o contexto e reproduzia aqui a minha sapiência de vão de escada, com o fim de intelectualizar e enriquecer os meus propósitos. Ficava bonito e emoldurava.

Mas prefiro o Bolhão.

Neste particular momento das nossas vidas – perdôem-me o arrojo de os incluir solidariamente nesta jornada maldita – em que milhares e milhares de concidadãos atravessam o deserto da esperança na perspectiva de ficarem desempregados e a serem condenados às galés sub-humanas do respeito e da dignidade, não serão concerteza ”os paninhos quentes” das filosofias, por muito apropriadas que sejam, a transmitir-lhes o ânimo e a coragem necessária para enfrentarem os dias negros que se avizinham.

Vamos pois ao vernáculo.

Há dezenas de anos que a sociedade portuguesa se vinha fracturando em dois pólos distintos: orla e interior. Devidamente apadrinhada por gerações de políticos néscios, preversos e incapazes – verdadeiros filhos da puta – assistiu-se à debandada consentida e apoiada de milhões de cidadãos do interior para as margens das grandes cidades – o centro era para ricos advogados, engalanados escritórios, glamorosas lojas de desperdício de luxo, hotéis ”de charme”, magníficos estádios, condomínios fechados e abandonados bairros históricos a cairem de podre, (as casas e as pessoas) – sem que houvesse por parte da corja assalariada com os nossos impostos, a menor tentativa de contrariar a tendência. Lá muito de vez em quando, aparecia um empolgante discurso sobre a necessidade de ”encurtar as assimetrias” que em bom português significava : o interior que se fodesse. Na realidade acontecia fecharem-se escolas, hospitais, centros de saúde, esquadras de polícia, empresas, fábricas, tudo em nome de um ”desenvolvimento sustentado” que, como podemos constatar, deu óptimos resultados.

Chegados aqui, é fácil de perceber o seguinte: quem mais vai sofrer com a actual situação são precisamente aqueles a quem acenaram com os ”eldorados” nas grandes cidades face à escassez de investimento no interior, cidadãos que vivem no presente empilhados em gaiolas de construção rasca, bairros terceiro-mundistas, sem recursos ou alternativas, sem emprego, sem dinheiro para pagar o crédito de casas que não valem um terço do seu custo, ou a prestação do carro que eram obrigados a possuir, mais o infantário onde ”recolhiam” a prole enquanto vergavam a mola e por último, o espectro de ter de recorrer à assistência social para poder alimentar a família. É um quadro criminoso, deplorável e injusto? É.

Com o horizonte pintado a negro que alternativa têem?

É também verdade que a necessidade aguça o engenho e por ironia do destino, talvez seja o momento de finalmente se assistir ao regresso dos ”enganados” para um mundo que já foi deles, dos pais e dos avós e que de forma inequívoca os pode acarinhar nessa aventura.

Não há dignidade humana que resista à carência de bens essenciais como o emprego, a educação, a saúde e, digo eu, no desespero da fome. São direitos constitucionais. E são precisamente esses que se volatizam nos tempos que correm.

Ocorre-me por isso pensar, que talvez seja a altura certa para as autarquias do interior, bem como instituições sociais já no terreno, terem uma palavra a dizer no apoio a quem queira ponderar o regresso. Porque não criarem programas que ajudem a recuperar as velhas casas das aldeias, muitas delas já sem dono e em risco de colapso, cobrando rendas simbólicas que serviriam para dignificar o processo? Os gabinetes de arquitectura e os serviços técnicos seriam uma mais valia nesse processo. Porque não o incentivo – a custo zero - à instalação de empresas familiares através de pequenos parques de negócios ou zonas demarcadas para o efeito devidamente infraestruturados. Às familias que se instalem e em condições de risco, poderia ser atribuído um cabaz alimentar mensal durante um certo período de tempo. Em contrapartida, porque não, esses novos colonos explorarem ou associarem as terras que ainda possuem, há anos ao abandono e que apenas aguardam o doce afagar de um tractor que lhes revolvam as entranhas e lhes dê de novo sentido? E tem as hortas que fornecem as vitaminas e a saúde, os galinheiros a carne e os ovos, o porco que sustenta o inverno, a vaca cujo leite calcifica os ossos, a água que o poço guarda, a ovelha que agasalha e o tempo que ainda corre devagar a mando do sol.

Não há muito, 60% dos portugueses vivia assim. E criaram filhos e netos. Sem abundância é certo, alguns com dificuldades, mas com o carácter e a dignidade intactos. É sobretudo disso que se trata.

Porque não reaprenderem a trabalhar a madeira e o ferro, fabricar os próprios utensílios, improvisar, recriar, fazer o pão e o vinho, colher a lenha que aquece as noites frias prevenindo assim os incêndios de verão. E o azeite, esse salutar e secular prodígio dos nossos campos. Afinal porque se abandonou tudo isto? Por um mal amanhado T2 numa qualquer periferia citadina? Por uns trocados que se esgotavam a meio do mês? Por uma vida de ânsia e correria para filas intermináveis de qualquer posto de saúde com fortes probabilidades de não ter médico? Pela educação dos filhos cujos canudos apenas lhes permitem engrossar as infindáveis listas de candidatos ao primeiro emprego? Para estar perto dos acontecimentos lúdicos e culturais sem dinheiro, paciência ou tempo para os frequentar? Para se deprimirem e gastar o pouco que resta em consultas e farmácias? Para envelhecer em bancos de jardim? Para comer a merda que se vende nas lusidias ”grandes superfícies”? Para finalmente serem despejados em lares de esquecimento e solidão? Porquê afinal?

Porque não voltar a cantar e a dançar nos ranchos, a tocar nas bandas da terra, a recuperar tradições, essas sim, um depósito inesgotável de riqueza comunitária e de cultura. Por alguma razão, os que se lembram desses tempos o recordam com saudade. Tinham a virtude de serem originais, verdadeiros, únicos. Uniam em vez de apartarem. Davam sentido à vida na sua exuberante simplicidade. Aproximavam as famílias. Solidarizavam a comunidade. Acudia-se às desgraças colectivas ou individuais com a bondade de espírito de quem compreende que a vida é um campo de obstáculos que tem de ser vencido. Havia querelas, desavenças, por vezes lutas, claro que sim! Mas não existe a perfeição. Apenas homens e mulheres com todos os defeitos e qualidades inerentes.

É um risco voltar à terra. Claro que é. Mas é também um desafio. E para aqueles que hoje nada têm, porque lhes sonegaram tudo, poderá ser um caminho, uma alternativa, uma esperança.

E de que abdicariam afinal.?

As chamadas sociedades civilizadas, ditas ocidentais e para nós a Europa, é hoje em dia composta por gente que se atropela por um lugar, mente por um ideal, vigariza por objectivos, destroi por ignorância, porque viciada numa ordem caduca de tratados obsoletos, estatísticas convenientes, cimeiras de deboche, que se reflectem no espelho baço, opaco mesmo, da democracia.

Acrescem a este pântano de merda, famintos banqueiros, especuladores de ocasião, investidores de casino que, como é diariamente confirmado, não passam de agiotas encartados, aves de rapina insaciáveis, cuja desmesurada ganância mergulhou o mundo na maior tragédia de que há memória. Pomposa e cinicamente apoiados por todos, mesmo todos, os governos. Por isso a Islândia faliu e nós, à porta estamos.

È este o circo para cuja entrada muitos pagaram e pagam com o desespero, a angústia, a derrota e por fim a miséria.

Procurar na terra uma saída para não ser comido vivo pelo sistema não será tarefa fácil.

É necessário cortar o mal pela raíz e extirpar de dentro de si e na medida do que o bom senso aconselhar, todo o lixo tóxico com que foi envenenado nestas últimas décadas.

Mande foder os banqueiros, os usurários, e todos aqueles que têm as mãos metidas nos seus bolsos. Não compre casa: alugue. Não compre carro se não tiver dinheiro. Não compre terra: arrende. Limpe solenemente o aos jornais nacionais cuja subserviência indecorosa aos grupos económicas tresanda a esgoto. Apague de vez a televisão e transforme-a num aquário. Verá o quanto beneficia da tranquilidade repousante do objecto, face à actual estridência repugnante do som bem como o alívio que sentirá pelo facto de nunca mais ter de ver palhaços com cara de gente. Desfaça-se do computador e sobretudo da Net. É cara dá cabo dos olhos e é onde o seu filho passa o tempo a ver pornografia. Como se não bastasse, a ruína do sistema financeiro mundial passou todo, ou quase todo por ela. Mande definitivamente cagar os partidos. Esqueça o voto. Se é tentado por participações em feiras do género, contente-se em eleger o Presidente de Junta e em caso de extremo fervor cívico, o da Câmara. Para estudar os seus filhos têm as escolas profissionais que pelo menos lhes garantem a ”enxada”. Há quem queira ser pastor toda a vida. Ou carpinteiro. Ou mecânico Ou electricista. Ou pescador. Ou agricultor. Ou hortelão. Ou padeiro. Ou canalizador. Ou pedreiro. (Um dos meus melhores amigos é pedreiro desde os 10 anos. Tem sessenta. O pai pedreiro foi. É um homem bom. Honrado. Digno. Criou dois filhos. Vive numa aldeia.). Será que temos todos de ser doutores? Assine os jornais da sua terra porque eles falam de si e dos seus problemas, falam de coisas concretas e não de encomendadas ficções. Se gosta de futebol sem batota, apitos comprados e jogadores tatuados formados nas escolas de cabeleireiros, revestidos a gel e vocacionados para passagens de modelos, discotecas e casas de putas, então apoie o clube local, vibre com os seus, mesmo nas derrotas. Porque são os seus.

E depois, nos serões que voltam a ser da família, experimente a sensação do silêncio repousante enquanto, o lume crepita e, finalmente no tempo que é todo seu, leia o livro que a vida desaustinada nunca permitiu.

É simples. Só precisa de coragem e ”mandá-los foder a todos”.

P.S. - Consegui escrever esta carta, sem nunca mencionar essa ficção que insistem em apelidar de crise. Faço-me entender?

 

 

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