A Pilhagem - josé ricardo costa
"Mas que Torres Novas é esta sem torrejanos? A existência de Torres Novas é condição necessária para haver torrejanos"
Podemos dizer que um jogo de futebol sem público ou vida sem música é como um jardim sem flores. Não que um jardim sem flores deixe de ser um jardim. Acontece que, como no jogo de futebol, fica melhor se as tiver. Já se for uma sopa de feijão com couves que não tenha couves, a comparação com o jardim sem flores não funciona, pela singela razão de que uma sopa de feijão com couves que não tenha couves, sendo ainda sopa, sopa de feijão com couves não é de certeza.
Esta profunda reflexão surgiu-me há dias, a meio da tarde, quando precisei de desopilar um pouco, após várias aulas, atravessando num dia de semana o centro de Torres Novas sem ver quase ninguém. Daí resultou um estado mental de inquietante estranheza que me fez sentir a meio caminho entre um quadro de De Chirico e o sonho do dr. Isak Borg no filme Morangos Silvestres quando se descobre numa cidade completamente vazia, com relógios sem ponteiros e em que a única presença humana é ver-se a si próprio a passar numa rua morto num caixão.
Como é possível chegar a este ponto de ser tão difícil encontrar um torrejano na avenida como ouvir uma canção brasileira que não tenha as palavras “amor” ou “coração”? Não estou a exagerar, consegui fazer toda a avenida, cruzando-me com duas pessoas apenas. Só que uma delas tivesse dupla personalidade já seria mais simpático: passariam a ser três, um ramalhete humano mais compostinho.
Mas que Torres Novas é esta sem torrejanos? A existência de Torres Novas é condição necessária para haver torrejanos. Se não houvesse uma terra chamada Torres Novas não haveria torrejanos, do mesmo modo que não existem concrujanos pela simples razão de não existir uma terra chamada Concruje. Mas a existência de torrejanos também é condição necessária para Torres Novas existir. Aceito que seja menos intuitivo e até podemos perguntar se Torres Novas não continuaria a ser Torres Novas se rebentasse agora aqui uma bomba de neutrões que se limitasse a matar todos os torrejanos, deixando tudo o resto intacto. Parece que continuaria, pois se Torres Novas não é a avenida, a praça, as ruas, os edifícios, a estação de correios, o Virgínia, as lojas, os parques infantis, então é o quê? Aguiar da Beira?
Mas a verdade é que não, não continuaria a ser Torres Novas. Está bem, sim, Aguiar da Beira jamais seria mas metamos na cabeça que Torres Novas também não. Um conhecido filósofo chamado Martin Heidegger dizia que não há artista sem obra de arte nem obra de arte sem artista. Pronto, a relação entre Torres Novas e torrejanos é uma coisa do género. Como Cristo, recorro a uma linguagem figurada para explicar.
É através dos ossos, músculos, tendões, cordas vocais, que explicamos os diferentes movimentos de um corpo: andar, correr, saltar, estar sentado ou falar. Mas uma pessoa não está sentada, a andar ou a falar porque tem ossos, tendões, músculos ou cordas vocais. É porque tem crenças, desejos, motivos, finalidades, intenções que as levam a estar sentadas para tomar um café e ler o jornal, a andar na rua para ir comprar um molho de couves ou a usar as cordas vocais para perguntar (medo!) o resultado do Benfica.
Pela mesma razão, Torres Novas não é Torres Novas só porque tem as suas lojas, edifícios, ruas, mercado, praça ou avenida. Tudo isso existe para os torrejanos e não para os aguiarenses. Uma avenida, ruas, praças, lojas, mercado podem ser realidades físicas com identidades óbvias e distintas das de uma montanha, um oceano ou uma floresta mas uma avenida, ruas, praças, mercado, lojas sem torrejanos, uma cidade não é de certeza pois só há cidade onde há pessoas, ainda que possa haver pessoas sem cidade, só que, neste caso, torrejanos não serão.
Daí que a ideia de Torres Novas sem torrejanos esteja mais no mesmo nível, paradoxal, de uma sopa de feijão com couves que não tem couves, do que de um jardim sem flores. Porque para além dos elementos físicos específicos que nos fazem perceber que estamos na praça 5 de Outubro e não do Giraldo, que percorremos a rua Alexandre Herculano em vez da Augusta ou que passamos a ponte da Levada e não a de Ponte de Lima, o que faz de Torres Novas ser o que é, não é uma essência ideal, eterna e imutável, mas o que os torrejanos fazem dela com as suas dinâmicas sociais, económicas e culturais. Por que razão dizemos que a Torres Novas de hoje é diferente de há 60 anos? Porque os torrejanos são outros, fazendo outras coisas da sua terra e esperando coisas diferentes dela. O que já mudará tudo é os torrejanos não fazerem nada da sua terra ou dela nada esperarem.
Uma Torres Novas vazia passa a ser uma não-Torres Novas, feita de torrejanos que não estão lá, tornando-se estes, assim, por culpa própria, tanto não-torrejanos como um aguiarense, um fafense ou estremocense que também são não-torrejanos mas sem terem disso qualquer culpa ou sequer consciência. Estamos assim perante um agónico e autofágico processo de destorresnovização de Torres Novas que, por sua vez, destorrejaniza os torrejanos.
Torres Novas sem torrejanos fica assim um bocadinho como um robot sem pilhas, reduzida a um conjunto de elementos físicos que apenas lhe dá uma mera aparência de cidade. O que verdadeiramente senti naquela fatídica tarde de semana a andar por Torres Novas? Uma pilha desvitalizada e enferrujada dentro de um robot decrépito e meio enferrujado que já não consegue andar.
A Pilhagem - josé ricardo costa
Mas que Torres Novas é esta sem torrejanos? A existência de Torres Novas é condição necessária para haver torrejanos
Podemos dizer que um jogo de futebol sem público ou vida sem música é como um jardim sem flores. Não que um jardim sem flores deixe de ser um jardim. Acontece que, como no jogo de futebol, fica melhor se as tiver. Já se for uma sopa de feijão com couves que não tenha couves, a comparação com o jardim sem flores não funciona, pela singela razão de que uma sopa de feijão com couves que não tenha couves, sendo ainda sopa, sopa de feijão com couves não é de certeza.
Esta profunda reflexão surgiu-me há dias, a meio da tarde, quando precisei de desopilar um pouco, após várias aulas, atravessando num dia de semana o centro de Torres Novas sem ver quase ninguém. Daí resultou um estado mental de inquietante estranheza que me fez sentir a meio caminho entre um quadro de De Chirico e o sonho do dr. Isak Borg no filme Morangos Silvestres quando se descobre numa cidade completamente vazia, com relógios sem ponteiros e em que a única presença humana é ver-se a si próprio a passar numa rua morto num caixão.
Como é possível chegar a este ponto de ser tão difícil encontrar um torrejano na avenida como ouvir uma canção brasileira que não tenha as palavras “amor” ou “coração”? Não estou a exagerar, consegui fazer toda a avenida, cruzando-me com duas pessoas apenas. Só que uma delas tivesse dupla personalidade já seria mais simpático: passariam a ser três, um ramalhete humano mais compostinho.
Mas que Torres Novas é esta sem torrejanos? A existência de Torres Novas é condição necessária para haver torrejanos. Se não houvesse uma terra chamada Torres Novas não haveria torrejanos, do mesmo modo que não existem concrujanos pela simples razão de não existir uma terra chamada Concruje. Mas a existência de torrejanos também é condição necessária para Torres Novas existir. Aceito que seja menos intuitivo e até podemos perguntar se Torres Novas não continuaria a ser Torres Novas se rebentasse agora aqui uma bomba de neutrões que se limitasse a matar todos os torrejanos, deixando tudo o resto intacto. Parece que continuaria, pois se Torres Novas não é a avenida, a praça, as ruas, os edifícios, a estação de correios, o Virgínia, as lojas, os parques infantis, então é o quê? Aguiar da Beira?
Mas a verdade é que não, não continuaria a ser Torres Novas. Está bem, sim, Aguiar da Beira jamais seria mas metamos na cabeça que Torres Novas também não. Um conhecido filósofo chamado Martin Heidegger dizia que não há artista sem obra de arte nem obra de arte sem artista. Pronto, a relação entre Torres Novas e torrejanos é uma coisa do género. Como Cristo, recorro a uma linguagem figurada para explicar.
É através dos ossos, músculos, tendões, cordas vocais, que explicamos os diferentes movimentos de um corpo: andar, correr, saltar, estar sentado ou falar. Mas uma pessoa não está sentada, a andar ou a falar porque tem ossos, tendões, músculos ou cordas vocais. É porque tem crenças, desejos, motivos, finalidades, intenções que as levam a estar sentadas para tomar um café e ler o jornal, a andar na rua para ir comprar um molho de couves ou a usar as cordas vocais para perguntar (medo!) o resultado do Benfica.
Pela mesma razão, Torres Novas não é Torres Novas só porque tem as suas lojas, edifícios, ruas, mercado, praça ou avenida. Tudo isso existe para os torrejanos e não para os aguiarenses. Uma avenida, ruas, praças, lojas, mercado podem ser realidades físicas com identidades óbvias e distintas das de uma montanha, um oceano ou uma floresta mas uma avenida, ruas, praças, mercado, lojas sem torrejanos, uma cidade não é de certeza pois só há cidade onde há pessoas, ainda que possa haver pessoas sem cidade, só que, neste caso, torrejanos não serão.
Daí que a ideia de Torres Novas sem torrejanos esteja mais no mesmo nível, paradoxal, de uma sopa de feijão com couves que não tem couves, do que de um jardim sem flores. Porque para além dos elementos físicos específicos que nos fazem perceber que estamos na praça 5 de Outubro e não do Giraldo, que percorremos a rua Alexandre Herculano em vez da Augusta ou que passamos a ponte da Levada e não a de Ponte de Lima, o que faz de Torres Novas ser o que é, não é uma essência ideal, eterna e imutável, mas o que os torrejanos fazem dela com as suas dinâmicas sociais, económicas e culturais. Por que razão dizemos que a Torres Novas de hoje é diferente de há 60 anos? Porque os torrejanos são outros, fazendo outras coisas da sua terra e esperando coisas diferentes dela. O que já mudará tudo é os torrejanos não fazerem nada da sua terra ou dela nada esperarem.
Uma Torres Novas vazia passa a ser uma não-Torres Novas, feita de torrejanos que não estão lá, tornando-se estes, assim, por culpa própria, tanto não-torrejanos como um aguiarense, um fafense ou estremocense que também são não-torrejanos mas sem terem disso qualquer culpa ou sequer consciência. Estamos assim perante um agónico e autofágico processo de destorresnovização de Torres Novas que, por sua vez, destorrejaniza os torrejanos.
Torres Novas sem torrejanos fica assim um bocadinho como um robot sem pilhas, reduzida a um conjunto de elementos físicos que apenas lhe dá uma mera aparência de cidade. O que verdadeiramente senti naquela fatídica tarde de semana a andar por Torres Novas? Uma pilha desvitalizada e enferrujada dentro de um robot decrépito e meio enferrujado que já não consegue andar.
![]() Imagino que as últimas eleições terão sido oportunidade para belos e significativos encontros. Não é difícil pensar, sem ficar fora da verdade, que, em muitas empresas, patrões e empregados terão ambos votado no Chega. |
![]() "Hire a clown, get a circus" * Ele é antissistema. Prometeu limpar o aparelho político de toda a corrupção. Não tem filtros e, como o povo gosta, “chama os bois pelo nome”, não poupando pessoas ou entidades. |
![]() A eleição de um novo Papa é um acontecimento sempre marcante, apesar de se viver, na Europa, em sociedades cada vez mais estranhas ao cristianismo. Uma das grandes preocupações, antes, durante e após a eleição de Leão XIV, era se o sucessor de Francisco seria conservador ou progressista. |
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![]() Agora que nos estamos a aproximar, no calendário católico, da Páscoa, talvez valha a pena meditar nos versículos 36, 37 e 38, do Capítulo 18, do Evangelho de João. Depois de entregue a Pôncio Pilatos, Jesus respondeu à pergunta deste: Que fizeste? Dito de outro modo: de que és culpado? Ora, a resposta de Jesus é surpreendente: «O meu reino não é deste mundo. |