O ESPELHO - josé mota pereira
"Olhemos para o espelho, de luz bem acesa e confrontemo-nos com o rosto do mundo que temos"
Em 1992, ainda a RTP era a televisão única. Todas as quartas-feiras à noite o serão é dedicado a entrevistas protagonizadas por Carlos Cruz a uma série de personalidades. O espaço chama-se precisamente “Carlos Cruz - Quarta Feira” e numa noite a entrevista resultou numa conversa amena e franca. Porque entrevistador e entrevistado se entregaram um ao outro deixando para arquivo uma entrevista de invulgar qualidade. Ao fim de hora e meia, é chegado o momento de terminar.
De um lado Carlos Cruz. Do outro o octogenário escritor alentejano Manuel da Fonseca.
O primeiro, estende a mão para o cumprimento final interpelando o escritor:
- É um homem feliz?
Manuel da Fonseca, sorrindo como só ele sabia, de olhos grandes e brilhantes, responde de forma desconcertante:
- Não sou não, nunca! Sabe, os felizes são os indivíduos que, ou são estúpidos ou nunca repararam em nada.
Sorrindo ambos, percebendo a grandeza do momento, terminaram ali a entrevista.
Este pequeno pedaço de sabedoria tão simples, deste vulto maior da literatura portuguesa, tantas vezes esquecido, é uma sublime reflexão sobre a nossa felicidade humana e o nosso olhar sobre o outro.
Manuel da Fonseca serenamente, talvez antevendo estes dias, desafiava-nos para a urgência útil e necessária de olharmos para o outro. Ainda antes até de Saramago nos ter contado da nossa cegueira comum. De formas diferentes, ambos sabiam do que falavam.
Não pode haver felicidade quando todos os dias vamos assistindo à vitória da barbárie sobre a civilização. Silenciosamente, sem darmos conta, vamos permitindo que o relógio da História nos vá fazendo recuar no tempo, como se a sua engrenagem, as suas rodas dentadas, estivessem por inexplicável avaria, recuando os seus ponteiros, numa transformação do tempo em que o amanhã afinal possa ser o anteontem.
Confrontemo-nos.
Olhemos para o espelho, de luz bem acesa e confrontemo-nos com o rosto do mundo que temos. Não nos neguemos. Gostamos do que vemos?
É por aqui que que vamos?
Um mundo desigual e injusto, que aceita que os refugiados fugindo da fome e da miséria, fiquem detidos em Lesbos na porta da civilizada Europa? Um mundo que continua a aceitar a exploração capitalista e global do trabalho, daqueles que tudo produzem, dos “damnés de la terre”, de todas as terras, subjugados aos jogos dos consórcios financeiros transnacionais? Um mundo que continua a aceitar a guerra e os seus jogos, as ameaças à paz e à autodeterminação dos povos promovidas pelas potências de sempre, desde logo pelos EUA e pela Nato, semeando por todo o planeta repetidas manobras de ataque e chantagem militaristas de sempre? Um Mundo onde os ataques à liberdade, à democracia e aos direitos humanos permanecem em constante violação? Um mundo onde se continua a permitir a sobre-exploração dos recursos naturais, destruindo os equilíbrios ecológicos e a vida na nossa casa comum?
Neste canto, entalados entre a serra de Aire e o rio Almonda, no recato da nossa terra, tudo isto nos parece distante.
Vivemos aqui, quase tranquilamente aguardando agora que o Outono se anuncie nos ouriços dos castanheiros semeados pelo passeio da avenida. Sabemos que em breve provaremos os primeiros vinhos, do mosto que já ferve em muitas adegas particulares das aldeias do nosso concelho. Nesta serenidade outonal, a seguir virá a apanha da azeitona, o azeite novo regará os requentados e amassará, entre a erva doce e a canela, as merendeiras dos Santos.
Diríamos, face ao mundo, que somos felizes aqui.
Como talvez Cardílio tenha sido feliz com a sua Avita, tão longe que estava das conspirações que se teciam em Roma, capital do Império.
Mas olhemo-nos ao espelho, também aqui, em Torres Novas.
Ao nosso lado, na nossa rua, no nosso bairro, na nossa terra, há quem precise e muito, que não nos esqueçamos de como é ilusória esta aparente felicidade local. Não vê quem não quer que o mundo também dói deste lado da serra.
No momento em que celebra mais um aniversário, é tempo de escrever com justiça que o Jornal Torrejano tem sido um dos espelhos fundamentais para o confronto devido e necessário com a realidade do mundo da nossa terra. Que assim continue: agitando mansos confortos, que continue sendo um espelho límpido, desembaciado, recto e sem curvas convexas nem côncavas. Nós, leitores ou colunistas de ocasião, agradecemos a permanência e a coerência. Para que os outros não façam de nós, como diria o bom Manuel da Fonseca, cega ou estupidamente felizes.
Nota: é possível visualizar a entrevista completa de Carlos Cruz a Manuel da Fonseca no site da RTP Arquivos, nos seguintes links:
Parte 1: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/manuel-da-fonseca-parte-i/
Parte2: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/manuel-da-fonseca-parte-ii/
Parte 3: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/manuel-da-fonseca-parte-iii/
O ESPELHO - josé mota pereira
Olhemos para o espelho, de luz bem acesa e confrontemo-nos com o rosto do mundo que temos
Em 1992, ainda a RTP era a televisão única. Todas as quartas-feiras à noite o serão é dedicado a entrevistas protagonizadas por Carlos Cruz a uma série de personalidades. O espaço chama-se precisamente “Carlos Cruz - Quarta Feira” e numa noite a entrevista resultou numa conversa amena e franca. Porque entrevistador e entrevistado se entregaram um ao outro deixando para arquivo uma entrevista de invulgar qualidade. Ao fim de hora e meia, é chegado o momento de terminar.
De um lado Carlos Cruz. Do outro o octogenário escritor alentejano Manuel da Fonseca.
O primeiro, estende a mão para o cumprimento final interpelando o escritor:
- É um homem feliz?
Manuel da Fonseca, sorrindo como só ele sabia, de olhos grandes e brilhantes, responde de forma desconcertante:
- Não sou não, nunca! Sabe, os felizes são os indivíduos que, ou são estúpidos ou nunca repararam em nada.
Sorrindo ambos, percebendo a grandeza do momento, terminaram ali a entrevista.
Este pequeno pedaço de sabedoria tão simples, deste vulto maior da literatura portuguesa, tantas vezes esquecido, é uma sublime reflexão sobre a nossa felicidade humana e o nosso olhar sobre o outro.
Manuel da Fonseca serenamente, talvez antevendo estes dias, desafiava-nos para a urgência útil e necessária de olharmos para o outro. Ainda antes até de Saramago nos ter contado da nossa cegueira comum. De formas diferentes, ambos sabiam do que falavam.
Não pode haver felicidade quando todos os dias vamos assistindo à vitória da barbárie sobre a civilização. Silenciosamente, sem darmos conta, vamos permitindo que o relógio da História nos vá fazendo recuar no tempo, como se a sua engrenagem, as suas rodas dentadas, estivessem por inexplicável avaria, recuando os seus ponteiros, numa transformação do tempo em que o amanhã afinal possa ser o anteontem.
Confrontemo-nos.
Olhemos para o espelho, de luz bem acesa e confrontemo-nos com o rosto do mundo que temos. Não nos neguemos. Gostamos do que vemos?
É por aqui que que vamos?
Um mundo desigual e injusto, que aceita que os refugiados fugindo da fome e da miséria, fiquem detidos em Lesbos na porta da civilizada Europa? Um mundo que continua a aceitar a exploração capitalista e global do trabalho, daqueles que tudo produzem, dos “damnés de la terre”, de todas as terras, subjugados aos jogos dos consórcios financeiros transnacionais? Um mundo que continua a aceitar a guerra e os seus jogos, as ameaças à paz e à autodeterminação dos povos promovidas pelas potências de sempre, desde logo pelos EUA e pela Nato, semeando por todo o planeta repetidas manobras de ataque e chantagem militaristas de sempre? Um Mundo onde os ataques à liberdade, à democracia e aos direitos humanos permanecem em constante violação? Um mundo onde se continua a permitir a sobre-exploração dos recursos naturais, destruindo os equilíbrios ecológicos e a vida na nossa casa comum?
Neste canto, entalados entre a serra de Aire e o rio Almonda, no recato da nossa terra, tudo isto nos parece distante.
Vivemos aqui, quase tranquilamente aguardando agora que o Outono se anuncie nos ouriços dos castanheiros semeados pelo passeio da avenida. Sabemos que em breve provaremos os primeiros vinhos, do mosto que já ferve em muitas adegas particulares das aldeias do nosso concelho. Nesta serenidade outonal, a seguir virá a apanha da azeitona, o azeite novo regará os requentados e amassará, entre a erva doce e a canela, as merendeiras dos Santos.
Diríamos, face ao mundo, que somos felizes aqui.
Como talvez Cardílio tenha sido feliz com a sua Avita, tão longe que estava das conspirações que se teciam em Roma, capital do Império.
Mas olhemo-nos ao espelho, também aqui, em Torres Novas.
Ao nosso lado, na nossa rua, no nosso bairro, na nossa terra, há quem precise e muito, que não nos esqueçamos de como é ilusória esta aparente felicidade local. Não vê quem não quer que o mundo também dói deste lado da serra.
No momento em que celebra mais um aniversário, é tempo de escrever com justiça que o Jornal Torrejano tem sido um dos espelhos fundamentais para o confronto devido e necessário com a realidade do mundo da nossa terra. Que assim continue: agitando mansos confortos, que continue sendo um espelho límpido, desembaciado, recto e sem curvas convexas nem côncavas. Nós, leitores ou colunistas de ocasião, agradecemos a permanência e a coerência. Para que os outros não façam de nós, como diria o bom Manuel da Fonseca, cega ou estupidamente felizes.
Nota: é possível visualizar a entrevista completa de Carlos Cruz a Manuel da Fonseca no site da RTP Arquivos, nos seguintes links:
Parte 1: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/manuel-da-fonseca-parte-i/
Parte2: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/manuel-da-fonseca-parte-ii/
Parte 3: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/manuel-da-fonseca-parte-iii/
![]() Apresentados os candidatos à presidência da Câmara de Torres Novas, a realizar nos finais de Setembro, ou na primeira quinzena de Outubro, restam pouco mais de três meses (dois de férias), para se conhecer ao que vêm, quem é quem, o que defendem, para o concelho, na sua interligação cidade/freguesias. |
![]() O nosso major-general é uma versão pós-moderna do Pangloss de Voltaire, atestando que, no designado “mundo livre”, estamos no melhor possível, prontos para a vitória e não pode ser de outro modo. |
![]() “Pobre é o discípulo que não excede o seu mestre” Leonardo da Vinci
Mais do que rumor, é já certo que a IA é capaz de usar linguagem ininteligível para os humanos com o objectivo de ser mais eficaz. |
![]()
Em 2012, o psicólogo social Jonathan Haidt publicou a obra A Mente Justa: Porque as Pessoas Boas não se Entendem sobre Política e Religião. Esta obra é fundamental porque nos ajuda a compreender um dos dramas que assolam os países ocidentais, cujas democracias se estruturam, ainda hoje, pela dicotomia esquerda–direita. |
![]() Imagino que as últimas eleições terão sido oportunidade para belos e significativos encontros. Não é difícil pensar, sem ficar fora da verdade, que, em muitas empresas, patrões e empregados terão ambos votado no Chega. |
![]() "Hire a clown, get a circus" * Ele é antissistema. Prometeu limpar o aparelho político de toda a corrupção. Não tem filtros e, como o povo gosta, “chama os bois pelo nome”, não poupando pessoas ou entidades. |
![]() A eleição de um novo Papa é um acontecimento sempre marcante, apesar de se viver, na Europa, em sociedades cada vez mais estranhas ao cristianismo. Uma das grandes preocupações, antes, durante e após a eleição de Leão XIV, era se o sucessor de Francisco seria conservador ou progressista. |
![]() |
![]() |
![]() |
» 2025-07-03
» Jorge Carreira Maia
Direita e Esquerda, uma questão de sabores morais |
» 2025-07-08
» António Mário Santos
O meu projecto eleitoral para a autarquia |
» 2025-07-08
» José Alves Pereira
O MAJOR-GENERAL PATRONO DA GUERRA |
» 2025-07-08
» Acácio Gouveia
Inteligência artificial |