[Breve ensaio para uma carta ao futuro] - margarida trindade
"Aquele era o tempo do contágio. O tempo em que da ordem nasceu a desordem"
Aquele era o tempo do contágio. O tempo em que da ordem nasceu a desordem. O tempo da separação e da angústia. O tempo asséptico. O tempo final. O tempo do medo. O tempo da rebelião e de todos os perigos latentes.
Íamos trabalhar para logo nos recolhermos, desinfectados e lavados. Depois dos primeiros dias (que foram muitos) em que nos foi dito que ficássemos em casa, houve um intervalo de sol, bom tempo e um ar mais leve que respirámos aliviados. Mas logo os dias mais curtos e o número de mortos aumentaram e caiu sobre nós o encargo de voltarmos ao retiro prolongado.
A casa tornou-se por isso no reduto mais seguro para a maioria. Ou, pelo menos, para os que ao final do dia não eram acolhidos nos braços da miséria insalubre, do relento, ou no seio de um pai violento ou de uma família desesperada, ou de uma instituição sem colo ou de um chão frio paredes húmidas, água gelada e pratos vazios. O costume, porque a História é espelho e ciclo e o Homem é mímico. E a Humanidade a mesma, afinal.
Era o tempo da moléstia e do afecto não consumado. Dos ecrãs pelos quais se matavam saudades. Do líquido, por vezes viscoso e de cheiro desagradável, aplicado constantemente nas mãos; dos avós protegidos, mas apavorados, de um quotidiano consumido pela apreensão de se poder ser assaltado pelo mal, fora ou até dentro de casa.
Aqueles foram os dias da demora. Do nunca mais isto passa, caramba. Das escolhas médicas e dos conselhos não saia de casa, lave as mãos com frequência, evite multidões, pratique etiqueta respiratória e distância física, use máscara e sobreviva se conseguir. Porque era o que se fazia, resistia-se ao tempo, aos meses, à pobreza também imunológica e à fraqueza imunitária.
Nos dias inúteis, a lareira crepitava na sala e lá fora era o deserto. Sabíamos que, ao mínimo sintoma, havíamos de telefonar para um número que o governo estipulou para que o doente ficasse logo recenseado e a partir daí ser de imediato incluído num número de totais diários, que seria publicado a meio do dia seguinte e divulgado dia após dia pelo Ministério da Saúde.
Era o tempo da epidemia dos relatórios diários.
E era, assim, também, o tempo dos estados: de alerta, de contingência, de emergência, de saudade, de pobreza, de doença, de inquietude, de lamentos, de culpas, de frustração, de cansaço, de protestos, de desconfiança, de insegurança, de recolher obrigatório. Todos os ingredientes necessários para aquilo que havia de ser a tentativa de escalada democrática dos novos totalitarismos.
E tudo por causa do pânico. Se uns estavam aflitos por causa do contágio, outros havia que temiam perder rendimentos, empregos. Se podíamos medir a temperatura com termómetros digitais sem encostar, já a raiva e o medo mediam-se a cada desempregado, a cada salário em atraso, a cada limitação às liberdades dos cidadãos, a cada aumento do número de mortos, a cada família paralisada, a cada nova infecção.
No recato, a televisão servia de escape, filmes ou séries. Pouco mais. Como já não havia muitos que fizessem da leitura prática diária, embora o mercado editorial fosse abundante, era para a Internet e para as redes sociais que quase toda a gente convergia para comunicar e distrair-se. Uma minoria ainda saía, porém, para assistir a alguns espectáculos que vingaram. E claro, houve sempre os que nunca sacrificaram um costume e resistiram, foras da lei, por incúria ou simples incapacidade de compreensão.
Nessa sociedade ansiosa de então, havia dias em que nos era muito difícil pensar com clareza. Apáticos diante de torrentes de informação permanente, pouco ou nada estava nas nossas mãos que nos pudesse valer. Muitas vezes não sabíamos bem no que acreditar, se nas teorias negacionistas ou naqueles que nos pediam para ficarmos em casa — comportamento útil para salvar ou para desafogar um pouco o transbordante e exausto sistema nacional de saúde.
Aquele era o tempo do vírus. Das constipações e das conspirações. Do confinamento e da desconfiança. Da ciência e da fé. Dos sentimentos contraditórios constantes.
Por sorte, apanágio biológico, cuidado extremo, assintomatologia ou por tudo isto, sobrevivemos, muitos de nós, a esses tempos e aos anos agitados que se seguiram.
Sobre esse cenário — com evidências, hipóteses e conclusões— escreveram historiadores, nacionais e locais; jornalistas e sociólogos. E disso há provas e memórias, mais ou menos bem conservadas, mas que podem ser consultadas — para estudos ou aviso futuro — na biblioteca e no arquivo digitais da cidade.
Sei também que está agendada para um destes dias, no teatro local, a subida ao palco de uma peça sobre esses tempos antigos.
E no museu municipal há fotografias e objectos dessa época.
Retratos de quando éramos mais novos e usávamos todos máscaras. Isto, claro, antes da vitória da ciência e da descoberta da vacina que nos devolveu a vida.
[Breve ensaio para uma carta ao futuro] - margarida trindade
Aquele era o tempo do contágio. O tempo em que da ordem nasceu a desordem
Aquele era o tempo do contágio. O tempo em que da ordem nasceu a desordem. O tempo da separação e da angústia. O tempo asséptico. O tempo final. O tempo do medo. O tempo da rebelião e de todos os perigos latentes.
Íamos trabalhar para logo nos recolhermos, desinfectados e lavados. Depois dos primeiros dias (que foram muitos) em que nos foi dito que ficássemos em casa, houve um intervalo de sol, bom tempo e um ar mais leve que respirámos aliviados. Mas logo os dias mais curtos e o número de mortos aumentaram e caiu sobre nós o encargo de voltarmos ao retiro prolongado.
A casa tornou-se por isso no reduto mais seguro para a maioria. Ou, pelo menos, para os que ao final do dia não eram acolhidos nos braços da miséria insalubre, do relento, ou no seio de um pai violento ou de uma família desesperada, ou de uma instituição sem colo ou de um chão frio paredes húmidas, água gelada e pratos vazios. O costume, porque a História é espelho e ciclo e o Homem é mímico. E a Humanidade a mesma, afinal.
Era o tempo da moléstia e do afecto não consumado. Dos ecrãs pelos quais se matavam saudades. Do líquido, por vezes viscoso e de cheiro desagradável, aplicado constantemente nas mãos; dos avós protegidos, mas apavorados, de um quotidiano consumido pela apreensão de se poder ser assaltado pelo mal, fora ou até dentro de casa.
Aqueles foram os dias da demora. Do nunca mais isto passa, caramba. Das escolhas médicas e dos conselhos não saia de casa, lave as mãos com frequência, evite multidões, pratique etiqueta respiratória e distância física, use máscara e sobreviva se conseguir. Porque era o que se fazia, resistia-se ao tempo, aos meses, à pobreza também imunológica e à fraqueza imunitária.
Nos dias inúteis, a lareira crepitava na sala e lá fora era o deserto. Sabíamos que, ao mínimo sintoma, havíamos de telefonar para um número que o governo estipulou para que o doente ficasse logo recenseado e a partir daí ser de imediato incluído num número de totais diários, que seria publicado a meio do dia seguinte e divulgado dia após dia pelo Ministério da Saúde.
Era o tempo da epidemia dos relatórios diários.
E era, assim, também, o tempo dos estados: de alerta, de contingência, de emergência, de saudade, de pobreza, de doença, de inquietude, de lamentos, de culpas, de frustração, de cansaço, de protestos, de desconfiança, de insegurança, de recolher obrigatório. Todos os ingredientes necessários para aquilo que havia de ser a tentativa de escalada democrática dos novos totalitarismos.
E tudo por causa do pânico. Se uns estavam aflitos por causa do contágio, outros havia que temiam perder rendimentos, empregos. Se podíamos medir a temperatura com termómetros digitais sem encostar, já a raiva e o medo mediam-se a cada desempregado, a cada salário em atraso, a cada limitação às liberdades dos cidadãos, a cada aumento do número de mortos, a cada família paralisada, a cada nova infecção.
No recato, a televisão servia de escape, filmes ou séries. Pouco mais. Como já não havia muitos que fizessem da leitura prática diária, embora o mercado editorial fosse abundante, era para a Internet e para as redes sociais que quase toda a gente convergia para comunicar e distrair-se. Uma minoria ainda saía, porém, para assistir a alguns espectáculos que vingaram. E claro, houve sempre os que nunca sacrificaram um costume e resistiram, foras da lei, por incúria ou simples incapacidade de compreensão.
Nessa sociedade ansiosa de então, havia dias em que nos era muito difícil pensar com clareza. Apáticos diante de torrentes de informação permanente, pouco ou nada estava nas nossas mãos que nos pudesse valer. Muitas vezes não sabíamos bem no que acreditar, se nas teorias negacionistas ou naqueles que nos pediam para ficarmos em casa — comportamento útil para salvar ou para desafogar um pouco o transbordante e exausto sistema nacional de saúde.
Aquele era o tempo do vírus. Das constipações e das conspirações. Do confinamento e da desconfiança. Da ciência e da fé. Dos sentimentos contraditórios constantes.
Por sorte, apanágio biológico, cuidado extremo, assintomatologia ou por tudo isto, sobrevivemos, muitos de nós, a esses tempos e aos anos agitados que se seguiram.
Sobre esse cenário — com evidências, hipóteses e conclusões— escreveram historiadores, nacionais e locais; jornalistas e sociólogos. E disso há provas e memórias, mais ou menos bem conservadas, mas que podem ser consultadas — para estudos ou aviso futuro — na biblioteca e no arquivo digitais da cidade.
Sei também que está agendada para um destes dias, no teatro local, a subida ao palco de uma peça sobre esses tempos antigos.
E no museu municipal há fotografias e objectos dessa época.
Retratos de quando éramos mais novos e usávamos todos máscaras. Isto, claro, antes da vitória da ciência e da descoberta da vacina que nos devolveu a vida.
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![]() O nosso major-general é uma versão pós-moderna do Pangloss de Voltaire, atestando que, no designado “mundo livre”, estamos no melhor possível, prontos para a vitória e não pode ser de outro modo. |
![]() “Pobre é o discípulo que não excede o seu mestre” Leonardo da Vinci
Mais do que rumor, é já certo que a IA é capaz de usar linguagem ininteligível para os humanos com o objectivo de ser mais eficaz. |
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Em 2012, o psicólogo social Jonathan Haidt publicou a obra A Mente Justa: Porque as Pessoas Boas não se Entendem sobre Política e Religião. Esta obra é fundamental porque nos ajuda a compreender um dos dramas que assolam os países ocidentais, cujas democracias se estruturam, ainda hoje, pela dicotomia esquerda–direita. |
![]() Imagino que as últimas eleições terão sido oportunidade para belos e significativos encontros. Não é difícil pensar, sem ficar fora da verdade, que, em muitas empresas, patrões e empregados terão ambos votado no Chega. |
![]() "Hire a clown, get a circus" * Ele é antissistema. Prometeu limpar o aparelho político de toda a corrupção. Não tem filtros e, como o povo gosta, “chama os bois pelo nome”, não poupando pessoas ou entidades. |
![]() A eleição de um novo Papa é um acontecimento sempre marcante, apesar de se viver, na Europa, em sociedades cada vez mais estranhas ao cristianismo. Uma das grandes preocupações, antes, durante e após a eleição de Leão XIV, era se o sucessor de Francisco seria conservador ou progressista. |
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