Falta poesia nos corações (ditos) humanos
Opinião » 2024-09-19 » Maria Augusta Torcato" “Tenho muita dificuldade em compreender que o nosso mundo esteja como está e que seja governado por tantos insanos e cruéis."
No passado mês de agosto revisitei a peça de teatro de Bertolt Brecht “Mãe coragem”. O espaço em que a mesma foi representada é extraordinário, as ruínas do Convento do Carmo. A peça anterior a que tinha assistido naquele espaço, “As troianas”, também me havia suscitado a reflexão sobre o modo como as situações humanas se vão repetindo ao longo dos tempos. Minutos, horas, dias, anos. Séculos. Milénios… Parece mesmo que estamos presos, sem dar por isso, a uma roda que roda nuns carris e, pensando que seguimos um caminho sempre novo, afinal, é um caminho batido, muito velho e repetitivo. A consciência disso deixa-nos desconfortáveis e impotentes.
Brecht tem a lucidez e a capacidade de nos mostrar, mesmo que através da técnica da distanciação, o nosso próprio retrato, o retrato da nossa realidade, através de outros retratos e outras realidades. Como é possível que aquelas pessoas sejam as pessoas de hoje? Como é possível que aquelas situações sejam as situações de hoje? Como é possível que estejamos sempre a repetir as mesmas coisas? Como é possível que nós, humanos, que tanto gáudio manifestamos pelo nosso desenvolvimento, pelas nossas aprendizagens, pelos nossos progressos, afinal, continuemos presos a uma natureza anacrónica, desumana e destoante do que se supunha e auspiciava para os nossos tempos? O século XXI.
A problemática da guerra, dos jogos de poder e de interesses económicos e políticos mantém-se actual. A verdade é que eu não imaginaria mesmo que estaríamos, neste nosso tempo, a assistir, sem capacidade de intervir, a atitudes e comportamentos ditatoriais, imperialistas e de genocídio de uma forma tão brutal e destrutiva. A verdade é que tenho muita dificuldade em compreender e aceitar que o nosso mundo esteja como está e que seja governado por tantos insanos e cruéis, que infligem aos povos um sofrimento horroroso. E, mesmo que um povo se manifeste, que esse povo diga “não”, a indiferença e a manutenção do status dos poderosos são superiores e determinam a vida de todos os outros. Como é possível? Como aceitar?
Creio viver-se uma época em que a grande maravilha e espelho do desenvolvimento humano seria simplesmente deixar-se que as pessoas fossem pessoas. Que as pessoas pudessem respeitar-se, olhar-se olhos nos olhos e não temer julgamentos, não temer marginalização, não temer castigos, não temer… não temer…
Creio que falta poesia no coração dos homens. Se houvesse poesia no coração dos homens, talvez a doçura, a empatia e a compreensão fossem alimentos da vida. Talvez a reflexão se fizesse sempre com enfoque no que é “o nós” e não apenas “o eu”. Talvez houvesse empenho na destruição do egoísmo que grassa por aí e gera ignorância e maldade.
O “Jornal Torrejano” cumpre o seu trigésimo aniversário sem interrupção, está de parabéns, assim como todos os que o têm ajudado e feito neste percurso. Não é tarefa fácil manter-se como é, tendo em conta a crise que também afecta o jornalismo, que, às vezes, já nem parece jornalismo. Ao invés de se dedicar aos factos, de os desconstruir, de levar os leitores ou o público em geral à análise e à reflexão sobre a sua própria realidade, vai-se limitando a pressupostos, ao que são expectativas, ao que vai ou pode acontecer, sem que ainda tenha acontecido e mesmo nunca venha a acontecer. O olho atento, acutilante, com perspectiva analítica e crítica deixou de existir. As opiniões, mais que muitas, de especialistas não especialistas ou especialistas todo o terreno contaminam a informação, contaminam a realidade. Contaminam-nos. E nós deixamos. Como deixamos que o mundo esteja como está. E não vai melhorar. Que falta faz a poesia nos corações humanos.
Falta poesia nos corações (ditos) humanos
Opinião » 2024-09-19 » Maria Augusta Torcato“Tenho muita dificuldade em compreender que o nosso mundo esteja como está e que seja governado por tantos insanos e cruéis.
No passado mês de agosto revisitei a peça de teatro de Bertolt Brecht “Mãe coragem”. O espaço em que a mesma foi representada é extraordinário, as ruínas do Convento do Carmo. A peça anterior a que tinha assistido naquele espaço, “As troianas”, também me havia suscitado a reflexão sobre o modo como as situações humanas se vão repetindo ao longo dos tempos. Minutos, horas, dias, anos. Séculos. Milénios… Parece mesmo que estamos presos, sem dar por isso, a uma roda que roda nuns carris e, pensando que seguimos um caminho sempre novo, afinal, é um caminho batido, muito velho e repetitivo. A consciência disso deixa-nos desconfortáveis e impotentes.
Brecht tem a lucidez e a capacidade de nos mostrar, mesmo que através da técnica da distanciação, o nosso próprio retrato, o retrato da nossa realidade, através de outros retratos e outras realidades. Como é possível que aquelas pessoas sejam as pessoas de hoje? Como é possível que aquelas situações sejam as situações de hoje? Como é possível que estejamos sempre a repetir as mesmas coisas? Como é possível que nós, humanos, que tanto gáudio manifestamos pelo nosso desenvolvimento, pelas nossas aprendizagens, pelos nossos progressos, afinal, continuemos presos a uma natureza anacrónica, desumana e destoante do que se supunha e auspiciava para os nossos tempos? O século XXI.
A problemática da guerra, dos jogos de poder e de interesses económicos e políticos mantém-se actual. A verdade é que eu não imaginaria mesmo que estaríamos, neste nosso tempo, a assistir, sem capacidade de intervir, a atitudes e comportamentos ditatoriais, imperialistas e de genocídio de uma forma tão brutal e destrutiva. A verdade é que tenho muita dificuldade em compreender e aceitar que o nosso mundo esteja como está e que seja governado por tantos insanos e cruéis, que infligem aos povos um sofrimento horroroso. E, mesmo que um povo se manifeste, que esse povo diga “não”, a indiferença e a manutenção do status dos poderosos são superiores e determinam a vida de todos os outros. Como é possível? Como aceitar?
Creio viver-se uma época em que a grande maravilha e espelho do desenvolvimento humano seria simplesmente deixar-se que as pessoas fossem pessoas. Que as pessoas pudessem respeitar-se, olhar-se olhos nos olhos e não temer julgamentos, não temer marginalização, não temer castigos, não temer… não temer…
Creio que falta poesia no coração dos homens. Se houvesse poesia no coração dos homens, talvez a doçura, a empatia e a compreensão fossem alimentos da vida. Talvez a reflexão se fizesse sempre com enfoque no que é “o nós” e não apenas “o eu”. Talvez houvesse empenho na destruição do egoísmo que grassa por aí e gera ignorância e maldade.
O “Jornal Torrejano” cumpre o seu trigésimo aniversário sem interrupção, está de parabéns, assim como todos os que o têm ajudado e feito neste percurso. Não é tarefa fácil manter-se como é, tendo em conta a crise que também afecta o jornalismo, que, às vezes, já nem parece jornalismo. Ao invés de se dedicar aos factos, de os desconstruir, de levar os leitores ou o público em geral à análise e à reflexão sobre a sua própria realidade, vai-se limitando a pressupostos, ao que são expectativas, ao que vai ou pode acontecer, sem que ainda tenha acontecido e mesmo nunca venha a acontecer. O olho atento, acutilante, com perspectiva analítica e crítica deixou de existir. As opiniões, mais que muitas, de especialistas não especialistas ou especialistas todo o terreno contaminam a informação, contaminam a realidade. Contaminam-nos. E nós deixamos. Como deixamos que o mundo esteja como está. E não vai melhorar. Que falta faz a poesia nos corações humanos.
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