Uma cidade à espera de si própria - joão carlos lopes
1. Ser cidade não vale um caracol, não acrescenta uma vírgula a nenhum campeonato. Em Portugal, “cidade” não é nenhuma categoria político-administrativa, tratando-se de um título meramente honorífico. Honorífico, mas pouco, pois se a distinção pudesse conter em si alguma virtualidade, logo em 1982 os autarcas e os políticos portugueses trataram de abandalhar e mandar às urtigas a legislação que eles próprios criaram. Concluindo, não há nenhuma diferença de grau nem de substância entre uma vila de razoáveis dimensões e uma cidade pequena ou média. Pelo contrário, há vilas que são mais “cidades” que muitas das localidades que ostentam o título.
Por partes: até ao 25 de Abril de 1974 existiam em Portugal apenas cerca de 40 cidades: as antigas sedes de diocese da Idade Média (Lisboa, Porto, Braga, Coimbra, Viseu, Lamego, Évora, Silves e pouco mais) e outras que, pela sua importância histórica, foram um dia galardoadas com a “honra” de cidade. Eram essas as cidades aprendidas no mapa da escola por quem tem mais de 40 anos.
Até à nova lei que permitiu a criação de novas cidades, o regime democrático atribuiu o título a apenas duas vilas: Torres Vedras e Amadora, em 1979. Com a Lei n.º 11/82, de 2 de Junho, os deputados tinham finalmente à mão um instrumento para criar cidades a granel, empurrados por autarcas industriosos ou apenas com o objectivo de arregimentar simpatias eleitorais. É certo que a lei exigia que uma nova cidade tivesse um contínuo urbano de 8000 eleitores (cerca de 10 mil habitantes), para além de um conjunto de requisitos mais ou menos torneáveis. E com um artigo abre-latas, que dizia que à falta dos critérios definidos, podia-se evocar a importância histórica da terreola em questão. Ora, quem é que não gosta de ter importância histórica? Estava o baile armado.
Logo na década de 80, foram criadas cerca de 40 cidades de uma penada. No dia 8 de Julho de 1985, por exemplo, quando Torres Novas ascendeu a cidade, cerca de uma dezena de outras vilas atingiram o karma. Na década de 90, loucura-loucura, foram mais umas cinco dezenas e assim tem sido, sem parança, até meados do milénio quando a coisa, por escandalosa, arrefeceu para tomar fôlego um dia destes.
2. É um mito recorrente dizer-se ou pensar-se que alguém lutou arduamente para que uma vila passasse a cidade. Tudo se passou na sombra dos gabinetes e nas conexões entre autarcas, estruturas partidárias e grupos parlamentares, que, à compita, queriam chegar primeiro. Quando se verificou que os critérios legais, apesar de fraquitos, deixariam de fora muitas expectativas, PS e PSD estabeleceram entre si uma espécie de pacto de mercearia para viabilizar o tão almejado título às suas queridas vilas.
No caso de Torres Novas, até foi o PCP a tomar a dianteira: em 22 de Junho de 1983, o grupo parlamentar comunista fez dar entrada na Assembleia da República o projecto de lei n.º 127-III de elevação de Torres Novas a cidade, referindo a antiguidade histórica da vila e o foral 1190, o “triângulo de desenvolvimento com Tomar e Abrantes”, a sua zona de influência directa, alargada aos concelhos de Alcanena, Golegã e Entroncamento, “a excelente localização de Torres Novas”, “ponto de convergência entre o Sul, as Beiras e o norte do Ribatejo”, não esquecendo a indústria então instalada e a “importante rede comercial da vila”.
O PSD não quis ficar nas covas, afinal era poder em Torres Novas e o seu deputado Fernando Condesso também apresentou na AR, em 27 de Novembro de 1984, projecto de lei n.º 402-III, aludindo ao desenvolvimento económico e social de Torres Novas, à sua localização, “às indústrias de relevo na economia nacional”, com destaque para a indústria do papel, e sonhando já a passagem da futura auto-estrada Lisboa/Porto no concelho.
E foi, como se sabe, na reunião plenária de 8 de Julho de 1985, na sua 2.ª sessão legislativa da III legislatura (1983/1987) que a Assembleia da República aprovou a lei de elevação de Torres Novas a cidade, com promulgação do Presidente da República, António Ramalho Eanes, e de Mário Soares, primeiro-ministro, que referendou. Os dois projectos, o do PCP e o PSD, votados em simultâneo, tiveram um voto contra: o historiador César Oliveira, então deputado da UEDS, votou contra ou absteve-se nos muitos projectos votados nesse dia, certamente agastado com o modo como se tinha furado a lei para acomodar todos os casos em apreço. Votaram a favor o Partido Socialista (PS), Partido Social Democrata (PSD), Partido Comunista Português (PCP), Centro Democrático Social (CDS), Associação Social Democrata Independente (ASDI), e contra o deputado César Oliveira, da União de Esquerda Democrática e Socialista. No mesmo dia em que a lei Lei n.º 38/85, com um único artigo, ditava a elevação da vila de Torres Novas a cidade, recebiam igual galardão Rio Maior, Vila Nova de Famalicão, Santo Tirso, Santa Maria da Feira, Ponte de Sôr, Peso da Régua, Olhão, Montijo, Amarante e Águeda.
3. No distrito de Santarém, Tomar foi a primeira vila a ascender a cidade, em 1844, na sequência da promessa da rainha D.Maria II, que visitara a vila nesse ano. Depois foi Santarém (1868), que tinha mantido o título de vila mesmo sendo uma das mais importantes terras do reino durante séculos. Finalmente Abrantes, em 1916, e eram estas as três cidades que constavam no mapa de Portugal no que toca ao Ribatejo, até 1985.
Na década de 90, também as vilas ribatejanas de Alverca, Entroncamento, Almeirim, Cartaxo e Póvoa de Santa Iria e ainda Fátima e Ourém, do distrito de Santarém mas da antiga província da Beira Litoral, ascenderam à categoria de cidade, e Samora Correia teve essa “sorte” na década de 2000.
Hoje existem cerca de 160 cidades em Portugal, terras que têm, algumas, menos de 2000 habitantes, casos de Meda, ou Foz Coa, menos de 3000, enquanto há vilas com 50 mil. Sintra, Cascais e Oeiras, que são verdadeiras cidades, nem querem ouvir falar em deixar de ser vilas. Há casos de municípios com mais que uma cidade e em que a sede de concelho continua a ser uma vila, por não querer ser cidade (Sintra) e outro com mais que uma cidade com a sede de concelho na mais pequena. Nas regiões autónomas, descentralizou-se nos governos regionais a competência para a atribuição da categoria de cidade. Como aconteceria no continente com a regionalização (porque havia de ser diferente das regiões autónomas?), nas ilhas “subiram” a cidade terras mais pequenas que a Meia Via, Pernes ou a Azinhaga.
4. Seja como for, há sempre um conjunto de valores estéticos (urbanismo, paisagem urbana), sócio-culturais e sociológicos (dinâmicas sociais, energias, massa crítica) ou a diversidade de equipamentos e serviços, entre outros, que atribuímos a uma certa ideia de cidade, e uma certa ideia de cidade surge como confirmação vivencial, interior, quando estamos em Caldas da Rainha, Santarém ou mesmo em Tomar, e isto para falarmos em pequenas cidades. Torres Novas ascendeu a esse patamar, nestes 35 anos em que deixou de ser vila? De modo nenhum. Perdeu alguma coisa por ter deixado de ser vila? Ganhou alguma coisa por ser cidade? Também não. Ser cidade ou vila deixou de ter qualquer relevância e a reconstrução de uma terra em que dê gosto viver passa por outros paradigmas. E isso é muito difícil, com se tem visto.
NA FOTO, Banda Operária Torrejana e fanfarra dos bombeiros, no último dia de Torres Novas como vila, 7 de Julho de 1985, a caminho da inauguração do actual quartel dos BVT
Uma cidade à espera de si própria - joão carlos lopes
1. Ser cidade não vale um caracol, não acrescenta uma vírgula a nenhum campeonato. Em Portugal, “cidade” não é nenhuma categoria político-administrativa, tratando-se de um título meramente honorífico. Honorífico, mas pouco, pois se a distinção pudesse conter em si alguma virtualidade, logo em 1982 os autarcas e os políticos portugueses trataram de abandalhar e mandar às urtigas a legislação que eles próprios criaram. Concluindo, não há nenhuma diferença de grau nem de substância entre uma vila de razoáveis dimensões e uma cidade pequena ou média. Pelo contrário, há vilas que são mais “cidades” que muitas das localidades que ostentam o título.
Por partes: até ao 25 de Abril de 1974 existiam em Portugal apenas cerca de 40 cidades: as antigas sedes de diocese da Idade Média (Lisboa, Porto, Braga, Coimbra, Viseu, Lamego, Évora, Silves e pouco mais) e outras que, pela sua importância histórica, foram um dia galardoadas com a “honra” de cidade. Eram essas as cidades aprendidas no mapa da escola por quem tem mais de 40 anos.
Até à nova lei que permitiu a criação de novas cidades, o regime democrático atribuiu o título a apenas duas vilas: Torres Vedras e Amadora, em 1979. Com a Lei n.º 11/82, de 2 de Junho, os deputados tinham finalmente à mão um instrumento para criar cidades a granel, empurrados por autarcas industriosos ou apenas com o objectivo de arregimentar simpatias eleitorais. É certo que a lei exigia que uma nova cidade tivesse um contínuo urbano de 8000 eleitores (cerca de 10 mil habitantes), para além de um conjunto de requisitos mais ou menos torneáveis. E com um artigo abre-latas, que dizia que à falta dos critérios definidos, podia-se evocar a importância histórica da terreola em questão. Ora, quem é que não gosta de ter importância histórica? Estava o baile armado.
Logo na década de 80, foram criadas cerca de 40 cidades de uma penada. No dia 8 de Julho de 1985, por exemplo, quando Torres Novas ascendeu a cidade, cerca de uma dezena de outras vilas atingiram o karma. Na década de 90, loucura-loucura, foram mais umas cinco dezenas e assim tem sido, sem parança, até meados do milénio quando a coisa, por escandalosa, arrefeceu para tomar fôlego um dia destes.
2. É um mito recorrente dizer-se ou pensar-se que alguém lutou arduamente para que uma vila passasse a cidade. Tudo se passou na sombra dos gabinetes e nas conexões entre autarcas, estruturas partidárias e grupos parlamentares, que, à compita, queriam chegar primeiro. Quando se verificou que os critérios legais, apesar de fraquitos, deixariam de fora muitas expectativas, PS e PSD estabeleceram entre si uma espécie de pacto de mercearia para viabilizar o tão almejado título às suas queridas vilas.
No caso de Torres Novas, até foi o PCP a tomar a dianteira: em 22 de Junho de 1983, o grupo parlamentar comunista fez dar entrada na Assembleia da República o projecto de lei n.º 127-III de elevação de Torres Novas a cidade, referindo a antiguidade histórica da vila e o foral 1190, o “triângulo de desenvolvimento com Tomar e Abrantes”, a sua zona de influência directa, alargada aos concelhos de Alcanena, Golegã e Entroncamento, “a excelente localização de Torres Novas”, “ponto de convergência entre o Sul, as Beiras e o norte do Ribatejo”, não esquecendo a indústria então instalada e a “importante rede comercial da vila”.
O PSD não quis ficar nas covas, afinal era poder em Torres Novas e o seu deputado Fernando Condesso também apresentou na AR, em 27 de Novembro de 1984, projecto de lei n.º 402-III, aludindo ao desenvolvimento económico e social de Torres Novas, à sua localização, “às indústrias de relevo na economia nacional”, com destaque para a indústria do papel, e sonhando já a passagem da futura auto-estrada Lisboa/Porto no concelho.
E foi, como se sabe, na reunião plenária de 8 de Julho de 1985, na sua 2.ª sessão legislativa da III legislatura (1983/1987) que a Assembleia da República aprovou a lei de elevação de Torres Novas a cidade, com promulgação do Presidente da República, António Ramalho Eanes, e de Mário Soares, primeiro-ministro, que referendou. Os dois projectos, o do PCP e o PSD, votados em simultâneo, tiveram um voto contra: o historiador César Oliveira, então deputado da UEDS, votou contra ou absteve-se nos muitos projectos votados nesse dia, certamente agastado com o modo como se tinha furado a lei para acomodar todos os casos em apreço. Votaram a favor o Partido Socialista (PS), Partido Social Democrata (PSD), Partido Comunista Português (PCP), Centro Democrático Social (CDS), Associação Social Democrata Independente (ASDI), e contra o deputado César Oliveira, da União de Esquerda Democrática e Socialista. No mesmo dia em que a lei Lei n.º 38/85, com um único artigo, ditava a elevação da vila de Torres Novas a cidade, recebiam igual galardão Rio Maior, Vila Nova de Famalicão, Santo Tirso, Santa Maria da Feira, Ponte de Sôr, Peso da Régua, Olhão, Montijo, Amarante e Águeda.
3. No distrito de Santarém, Tomar foi a primeira vila a ascender a cidade, em 1844, na sequência da promessa da rainha D.Maria II, que visitara a vila nesse ano. Depois foi Santarém (1868), que tinha mantido o título de vila mesmo sendo uma das mais importantes terras do reino durante séculos. Finalmente Abrantes, em 1916, e eram estas as três cidades que constavam no mapa de Portugal no que toca ao Ribatejo, até 1985.
Na década de 90, também as vilas ribatejanas de Alverca, Entroncamento, Almeirim, Cartaxo e Póvoa de Santa Iria e ainda Fátima e Ourém, do distrito de Santarém mas da antiga província da Beira Litoral, ascenderam à categoria de cidade, e Samora Correia teve essa “sorte” na década de 2000.
Hoje existem cerca de 160 cidades em Portugal, terras que têm, algumas, menos de 2000 habitantes, casos de Meda, ou Foz Coa, menos de 3000, enquanto há vilas com 50 mil. Sintra, Cascais e Oeiras, que são verdadeiras cidades, nem querem ouvir falar em deixar de ser vilas. Há casos de municípios com mais que uma cidade e em que a sede de concelho continua a ser uma vila, por não querer ser cidade (Sintra) e outro com mais que uma cidade com a sede de concelho na mais pequena. Nas regiões autónomas, descentralizou-se nos governos regionais a competência para a atribuição da categoria de cidade. Como aconteceria no continente com a regionalização (porque havia de ser diferente das regiões autónomas?), nas ilhas “subiram” a cidade terras mais pequenas que a Meia Via, Pernes ou a Azinhaga.
4. Seja como for, há sempre um conjunto de valores estéticos (urbanismo, paisagem urbana), sócio-culturais e sociológicos (dinâmicas sociais, energias, massa crítica) ou a diversidade de equipamentos e serviços, entre outros, que atribuímos a uma certa ideia de cidade, e uma certa ideia de cidade surge como confirmação vivencial, interior, quando estamos em Caldas da Rainha, Santarém ou mesmo em Tomar, e isto para falarmos em pequenas cidades. Torres Novas ascendeu a esse patamar, nestes 35 anos em que deixou de ser vila? De modo nenhum. Perdeu alguma coisa por ter deixado de ser vila? Ganhou alguma coisa por ser cidade? Também não. Ser cidade ou vila deixou de ter qualquer relevância e a reconstrução de uma terra em que dê gosto viver passa por outros paradigmas. E isso é muito difícil, com se tem visto.
NA FOTO, Banda Operária Torrejana e fanfarra dos bombeiros, no último dia de Torres Novas como vila, 7 de Julho de 1985, a caminho da inauguração do actual quartel dos BVT
![]() Imagino que as últimas eleições terão sido oportunidade para belos e significativos encontros. Não é difícil pensar, sem ficar fora da verdade, que, em muitas empresas, patrões e empregados terão ambos votado no Chega. |
![]() "Hire a clown, get a circus" * Ele é antissistema. Prometeu limpar o aparelho político de toda a corrupção. Não tem filtros e, como o povo gosta, “chama os bois pelo nome”, não poupando pessoas ou entidades. |
![]() A eleição de um novo Papa é um acontecimento sempre marcante, apesar de se viver, na Europa, em sociedades cada vez mais estranhas ao cristianismo. Uma das grandes preocupações, antes, durante e após a eleição de Leão XIV, era se o sucessor de Francisco seria conservador ou progressista. |
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![]() Agora que nos estamos a aproximar, no calendário católico, da Páscoa, talvez valha a pena meditar nos versículos 36, 37 e 38, do Capítulo 18, do Evangelho de João. Depois de entregue a Pôncio Pilatos, Jesus respondeu à pergunta deste: Que fizeste? Dito de outro modo: de que és culpado? Ora, a resposta de Jesus é surpreendente: «O meu reino não é deste mundo. |