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CAMÕES, AMÁLIA E A MERCEARIA DO SENHOR SOARES - josé alves pereira

Opinião  »  2020-08-19  »  José Alves Pereira

"A casa dos meus tios era um 2º andar, no Beco dos Birbantes, a que se acedia por uma escada íngreme e estreita"

Por vicissitudes da vida familiar, em Abril de 1953, pouco depois de fazer 5 anos, fui viver para Lisboa com uns tios que moravam numa ruela paredes meias à Calçada de Santana. Ela, Elisa Moreira, nascera no Outeiro Grande (Torres Novas) e indo servir para Lisboa ali conheceu José Bernardo com quem “casou”. Ele, natural de Trancoso, exercia a profissão de guarda-fios, daqueles que subiam aos postes para reparar as ligações telefónicas. A empresa era a APT (The Anglo-Portuguese Telephone, Company) que em 1968 passaria a TLP. Por vezes trazia uns equipamentos que eu admirava: uns grampos que se amarravam às botas, com o feitio de uma meia lua, feitos de ferro e com uns bicos interiores que se cravavam nos postes de madeira ao trepar. Esteve em França, na frente da 1ª Guerra Mundial, integrando o CEP (Corpo Expedicionário Português). Penso que dos dias amargos, e dos resquícios republicanos, lhe sobreveio o vezo anticlerical, referindo-se aos padres como a seita negra jesuítica. A minha tia pelo contrário era bem religiosa embora não muito assídua à igreja. Rezava, e eu acompanhava, ao levantar e ao deitar, antes e depois das refeições. Pelo Natal ia à Igreja da Pena, ouvia a liturgia e colocado na fila, beijava os pézinhos do menino Jesus. Mais do que devoção era medo que ali sentia. Tudo tão lúgubre ! De quando em vez, num circuito que corria a paróquia, um singelo Oratório com a Sagrada Família, alumiado por velas, pousava em cima de um móvel da sala. Nada parecido com a grandeza ostentatória que Eça de Queirós, na Relíquia, colocou em casa da titi de Teodorico Raposo, pouco acima no nº 47 do Campo de Santana. Fiquei vacinado ! Não mais voltei a qualquer frequência religiosa.

A casa dos meus tios era um 2º andar, no Beco dos Birbantes, a que se acedia por uma escada íngreme e estreita, com degraus em madeira que rangiam. Das traseiras via-se a Estação do Rossio e ouviam-se os comboios. Na porta da rua pendia um cordel que subia até à cozinha, onde uma sineta tocava. Assumava-se à janela para verificar o chegante e abria-se a porta puxando um cordel ligado ao trinco da fechadura. Era o que acontecia quando o correio, o marçano do sr. Soares, o ardina dos jornais, o galego da carvoaria ou o pregão da peixeira Beatriz se anunciavam. Descia então um cesto pendurado numa corda para recolher as compras.

As saídas de casa mais longínquas eram quando ia de eléctrico até à Cruz Quebrada e depois a pé, atravessando uma mata, até chegar ao Forte de Caxias, onde estavam o meu pai e um tio. Mais frequentes eram as idas à venda do sr. Soares, que fazendo esquina com a Calçada de Santana, de um lado tinha a taberna e do outro a mercearia. Naquele tempo em que os cereais, o café, acúcar ou especiarias e demais produtos se acolhiam em sacos e embalagens abertas, com avios ao momento, emanava de tudo aquilo uns cheiros doces e agradáveis. O marçano, rapazito vindo da província, acabada a primária, enroupando uma bata acinzentada lá ia acorrendo aos pedidos. Eu, pequenito nos meus 5 anos, sentado no balcão, desafiado, ia exibindo os dotes cantantes, retribuídos com umas línguas de gato ou uns beijinhos de preta (pequenos biscoitos encimados com um creme seco colorido). Ficando por aqui seria apenas uma recordação comezinha de uma ruela e de uma mercearia num bairro popular lisboeta se a ela não associasse uma referência, que só conheci mais tarde, numa casual visita recordatória.

Na fachada do 1º andar, numa placa, podia ler-se “ NÉSTA CASA, SEGUNDO A TRADIÇÃO DOCUMENTAL, FALLECEU EM 10 DE JUNHO DE 1580 LUIZ DE CAMÔES. O ACTUAL PROPRIETÁRIO MANOEL JOSÉ CORREIA MANDOU PÔR ÉSTA LAPIDE EM 1867”. Tivesse eu o dom de recuar no tempo e na história e ao ouvir o ressoar dos passos do nosso Luís no andar de cima, subiria a escada e perguntar-lhe-ia coisas da sua vida aventurosa : a refrega em África em que perdeu um olho, se ainda ia ao Bairro Alto almoçar com os nobres na taberna do Mal-cozinhado, como eram os dias na prisão do Tronco, ali em baixo nas Portas de Santo Antão, etc. Responder-me-ia talvez com um dos seus sonetos:

Vivo em lembranças, morro de esquecido,

De quem sempre devera ser lembrado,

Se lhe lembrara estado tão contente

Esperásse ele uns anos, antes de se juntar às suas ninfas no céu etéreo, e num século vindouro ouviria cantar os seus versos não esquecidos:

Descalça vai para a fonte

Lianor pela verdura;

Vai fermosa, e não segura.

É que uns passos abaixo da casa onde ele vivera e se finara, no nº 86 da Rua Martim Vaz nascia em 23 de Julho 1920, fazendo agora cem anos, aquela que primeiro os cantaria (1963) e deles faria parte relevante do seu reportório: Amália Rodrigues.

Eis como a mercearia do senhor Soares, ali à Calçada de Santana, serviu de pretexto para lembrar um romance do Eça ao cimo da rua, o passamento de Camões subindo a escada e portas abaixo o nascimento da dona Amália. Tudo tão perto e afinal tão ligado .

 

 

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