Gisèle Pelicot é uma mulher comum - joão ribeiro e raquel batista
Opinião » 2025-03-13
Gisèle Pelicot vive e cresceu em França. Tem 71 anos. Casou-se aos 20 anos de idade com Dominique Pelicot, de 72 anos, hoje reformado. Teve dois filhos.
Gisèle não sabia que a pessoa que escolheu para estar ao seu lado ao longo da vida a repudiava ao ponto de não suportar a ideia de não lhe fazer mal, tudo isto em segredo e com a ajuda de outros homens, que, como ele, viviam vidas aparentemente, parcialmente e eticamente comuns.
Por infortúnio, para aqueles que agiam de forma grotesca e cobarde, Gisèle expôs o que mais de 80 pessoas faziam com o seu corpo quando dormia, ou quando se encontrava inconsciente. Gisèle, uma mulher de 71 anos, que vive em França, e casou com homem, de 72 anos, com quem teve dois filhos, foi manipulada enquanto dormia e enquanto estava acordada, manipulada fisicamente e mentalmente.
Sugerimos com este texto, que antes de passarmos para uma discussão sobre aquilo que aqui se torna mais evidente, o direito e o dever cívico e humano desta mulher em tornar a sua história pública, reflectirmos sobre o seu marido, tentando não tornar este texto num ensaio insultuoso, importando aqui compreender a volatilidade da palavra confiança.
Ela nunca notou nada?!
Essa é a pergunta que ressoa mais alto. Como é possível viver décadas sem que um vislumbre da verdade se insinue na rotina, sem que o quotidiano escancare os seus dentes? Não é fácil aceitar que tantas engrenagens giraram, ocultas, por tanto tempo. No entanto, essa incredulidade talvez revele mais sobre nós do que sobre Gisèle. Há algo de profundamente humano no desejo de encontrar falhas na percepção alheia, como se a incapacidade de notar transformasse a vítima numa cúmplice do crime.
Como nunca houve uma marca ou sintoma do soporífero? Uma pergunta que parte do pressuposto de que o corpo denuncia sempre o que sofre, de que a dor tem o dever de ser visível, legível. Mas e se a própria normalidade foi cuidadosamente construída para mascarar o que acontecia? Se o marido, com a conivência do ambiente, teceu uma narrativa onde Gisèle, ao acordar, via apenas cansaço, uma nódoa esquecida, um incômodo banal que não valia a pena interrogar?
E as testemunhas? Os vizinhos, o homem do gás, os filhos... Como é que ninguém viu? Mas será que nunca viram mesmo? Ou será que a visão já se habituou a desviar-se, como quem olha por cima do ombro de uma sombra? Porque não faltam casos de comunidades inteiras que se tornam silenciosas e cúmplices de atrocidades – por medo, conveniência, ou, pior, pela aceitação de que o mal, uma vez tornado quotidiano, já não choca, já não perturba.
Talvez Gisèle, como tantos outros, tenha vivido presa num enredo maior, o da banalização do mal. Essa anestesia moral que se infiltra lentamente, tornando o grotesco algo quase imperceptível. Hannah Arendt, ao falar de Eichmann, não descreveu um monstro, mas um funcionário eficiente, uma pessoa banalmente comum, mecanicamente atenta ao cumprimento de regras, incapaz de questionar a monstruosidade do que fazia. O mal, assim, parece não exigir genialidade, apenas conveniência e silêncio.
Mas, e os predadores? Como se conhecem, como operam? Há uma sociabilidade subterrânea que une esses homens, um entendimento que escapa à lógica convencional. Como se houvesse um radar que lhes permite identificar uns aos outros, uma linguagem não verbal que garante a partilha do inominável. A questão que não podemos evitar é: até que ponto somos diferentes deles? Será que qualquer um de nós, colocado no cenário certo, poderia ser cúmplice?
O silêncio. Eis o verdadeiro protagonista desta história. O silêncio de quem sabia e nada disse. O silêncio de quem percebeu e preferiu desviar os olhos. O silêncio da própria Gisèle, que talvez tenha notado algo, mas, isolada pela violência invisível que lhe era imposta, nunca pôde articular o que sentia. A nossa sociedade é construída sobre esse pacto de silêncio, uma resignação colectiva que torna possível a continuidade de tantas tragédias.
Assim, a questão final deixa de ser sobre Gisèle ou os predadores que a violentaram. A pergunta mais importante é: por que continuamos a permitir que o mal se torne banal? Por que ficamos calados? E o que será necessário para que o silêncio se torne, finalmente, insuportável?
[imagem: Wikipédia]
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Gisèle Pelicot é uma mulher comum - joão ribeiro e raquel batista
Opinião » 2025-03-13
Gisèle Pelicot vive e cresceu em França. Tem 71 anos. Casou-se aos 20 anos de idade com Dominique Pelicot, de 72 anos, hoje reformado. Teve dois filhos.
Gisèle não sabia que a pessoa que escolheu para estar ao seu lado ao longo da vida a repudiava ao ponto de não suportar a ideia de não lhe fazer mal, tudo isto em segredo e com a ajuda de outros homens, que, como ele, viviam vidas aparentemente, parcialmente e eticamente comuns.
Por infortúnio, para aqueles que agiam de forma grotesca e cobarde, Gisèle expôs o que mais de 80 pessoas faziam com o seu corpo quando dormia, ou quando se encontrava inconsciente. Gisèle, uma mulher de 71 anos, que vive em França, e casou com homem, de 72 anos, com quem teve dois filhos, foi manipulada enquanto dormia e enquanto estava acordada, manipulada fisicamente e mentalmente.
Sugerimos com este texto, que antes de passarmos para uma discussão sobre aquilo que aqui se torna mais evidente, o direito e o dever cívico e humano desta mulher em tornar a sua história pública, reflectirmos sobre o seu marido, tentando não tornar este texto num ensaio insultuoso, importando aqui compreender a volatilidade da palavra confiança.
Ela nunca notou nada?!
Essa é a pergunta que ressoa mais alto. Como é possível viver décadas sem que um vislumbre da verdade se insinue na rotina, sem que o quotidiano escancare os seus dentes? Não é fácil aceitar que tantas engrenagens giraram, ocultas, por tanto tempo. No entanto, essa incredulidade talvez revele mais sobre nós do que sobre Gisèle. Há algo de profundamente humano no desejo de encontrar falhas na percepção alheia, como se a incapacidade de notar transformasse a vítima numa cúmplice do crime.
Como nunca houve uma marca ou sintoma do soporífero? Uma pergunta que parte do pressuposto de que o corpo denuncia sempre o que sofre, de que a dor tem o dever de ser visível, legível. Mas e se a própria normalidade foi cuidadosamente construída para mascarar o que acontecia? Se o marido, com a conivência do ambiente, teceu uma narrativa onde Gisèle, ao acordar, via apenas cansaço, uma nódoa esquecida, um incômodo banal que não valia a pena interrogar?
E as testemunhas? Os vizinhos, o homem do gás, os filhos... Como é que ninguém viu? Mas será que nunca viram mesmo? Ou será que a visão já se habituou a desviar-se, como quem olha por cima do ombro de uma sombra? Porque não faltam casos de comunidades inteiras que se tornam silenciosas e cúmplices de atrocidades – por medo, conveniência, ou, pior, pela aceitação de que o mal, uma vez tornado quotidiano, já não choca, já não perturba.
Talvez Gisèle, como tantos outros, tenha vivido presa num enredo maior, o da banalização do mal. Essa anestesia moral que se infiltra lentamente, tornando o grotesco algo quase imperceptível. Hannah Arendt, ao falar de Eichmann, não descreveu um monstro, mas um funcionário eficiente, uma pessoa banalmente comum, mecanicamente atenta ao cumprimento de regras, incapaz de questionar a monstruosidade do que fazia. O mal, assim, parece não exigir genialidade, apenas conveniência e silêncio.
Mas, e os predadores? Como se conhecem, como operam? Há uma sociabilidade subterrânea que une esses homens, um entendimento que escapa à lógica convencional. Como se houvesse um radar que lhes permite identificar uns aos outros, uma linguagem não verbal que garante a partilha do inominável. A questão que não podemos evitar é: até que ponto somos diferentes deles? Será que qualquer um de nós, colocado no cenário certo, poderia ser cúmplice?
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[imagem: Wikipédia]
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