Saudades da ditadura - jorge carreira maia
Opinião » 2020-09-01 » Jorge Carreira Maia"Toda aquela desolação não se devia, nem de perto nem de longe, às condições tecnológicas da época..."
Das muitas fotografias que o fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson fez no nosso país, no ano de 1955, há uma que diz muito sobre o regime político em que se vivia e o grau de atraso social e tecnológico que era o de Portugal. Não me refiro a qualquer das fotografias onde surgem miúdos de pés descalços, nem a nenhuma das que mostram as portuguesas vestidas de negro, como se vivessem um luto eterno, tão pouco a alguma onde se observam homens adultos vestidos com roupas que não são mais que um conjunto de remendos cozidos entre si. Deixemo-las de lado.
A fotografia a que me refiro é aquela em que se vê uma planície alentejana a perder de vista, rasgada por uma estrada – uma recta sem fim – em estado de conservação medíocre. De um dos lados da estrada, vê-se uma fileira de postes de electricidade. Do outro, muito ao longe, uma casa isolada. Os campos estão sem cultura alguma, talvez numa fase entre duas campanhas do trigo. Esta sensação de abandono que se desprende da paisagem alentejana pega-se aos olhos como se fosse uma infecção difícil de debelar. Nessa estrada infinita, vê-se, de costas, um casal num veículo. Não são, obviamente, trabalhadores rurais. Ele tem fato e chapéu à lavrador alentejano e ela está vestida com algum cuidado, onde se vê que procura mostrar uma elegância discreta. O veículo, porém, não é um automóvel descapotável, mas uma rudimentar carroça. Estávamos em 1955.
Esta fotografia diz muito do que era Portugal nesses tempos, dos quais parece que há por aí gente saudosíssima, embora nunca os tenha vivido. Aquele casal não era, certamente, composto por pessoas ligadas ao grande latifúndio, mas também não pertencia ao mundo da terrível pobreza – de passar fome – que devastava então o Alentejo. Faziam parte do que se podia considerar a classe média local da altura. Costuma-se dizer que nesses tempos até os ricos eram pobres. Embora não seja exactamente verdade no que diz respeito aos muito ricos, as classes médias, além de pequenas em número, viviam numa austeridade contínua que tocava uma pobreza envergonhada.
Toda aquela desolação não se devia, nem de perto nem de longe, às condições tecnológicas da época, mas a opções políticas que fecharam o país não apenas à democracia e ao debate de ideias, mas ao desenvolvimento científico, tecnológico e empresarial. Uma parte do país, mesmo em 1974, quase 20 anos depois da fotografia referida, vivia praticamente como na Idade Média. Quando as pessoas louvam a ditadura e estendem o lençol dos encómios ao professor Salazar, seria bom que tivessem consciência de que, muitas delas, se vivessem nesse tempo passariam fome e andariam descalças. Talvez seja isso que desejam experimentar.
Saudades da ditadura - jorge carreira maia
Opinião » 2020-09-01 » Jorge Carreira MaiaToda aquela desolação não se devia, nem de perto nem de longe, às condições tecnológicas da época...
Das muitas fotografias que o fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson fez no nosso país, no ano de 1955, há uma que diz muito sobre o regime político em que se vivia e o grau de atraso social e tecnológico que era o de Portugal. Não me refiro a qualquer das fotografias onde surgem miúdos de pés descalços, nem a nenhuma das que mostram as portuguesas vestidas de negro, como se vivessem um luto eterno, tão pouco a alguma onde se observam homens adultos vestidos com roupas que não são mais que um conjunto de remendos cozidos entre si. Deixemo-las de lado.
A fotografia a que me refiro é aquela em que se vê uma planície alentejana a perder de vista, rasgada por uma estrada – uma recta sem fim – em estado de conservação medíocre. De um dos lados da estrada, vê-se uma fileira de postes de electricidade. Do outro, muito ao longe, uma casa isolada. Os campos estão sem cultura alguma, talvez numa fase entre duas campanhas do trigo. Esta sensação de abandono que se desprende da paisagem alentejana pega-se aos olhos como se fosse uma infecção difícil de debelar. Nessa estrada infinita, vê-se, de costas, um casal num veículo. Não são, obviamente, trabalhadores rurais. Ele tem fato e chapéu à lavrador alentejano e ela está vestida com algum cuidado, onde se vê que procura mostrar uma elegância discreta. O veículo, porém, não é um automóvel descapotável, mas uma rudimentar carroça. Estávamos em 1955.
Esta fotografia diz muito do que era Portugal nesses tempos, dos quais parece que há por aí gente saudosíssima, embora nunca os tenha vivido. Aquele casal não era, certamente, composto por pessoas ligadas ao grande latifúndio, mas também não pertencia ao mundo da terrível pobreza – de passar fome – que devastava então o Alentejo. Faziam parte do que se podia considerar a classe média local da altura. Costuma-se dizer que nesses tempos até os ricos eram pobres. Embora não seja exactamente verdade no que diz respeito aos muito ricos, as classes médias, além de pequenas em número, viviam numa austeridade contínua que tocava uma pobreza envergonhada.
Toda aquela desolação não se devia, nem de perto nem de longe, às condições tecnológicas da época, mas a opções políticas que fecharam o país não apenas à democracia e ao debate de ideias, mas ao desenvolvimento científico, tecnológico e empresarial. Uma parte do país, mesmo em 1974, quase 20 anos depois da fotografia referida, vivia praticamente como na Idade Média. Quando as pessoas louvam a ditadura e estendem o lençol dos encómios ao professor Salazar, seria bom que tivessem consciência de que, muitas delas, se vivessem nesse tempo passariam fome e andariam descalças. Talvez seja isso que desejam experimentar.
As eleições e o triunfo do pensamento mágico - jorge carreira maia » 2024-04-10 » Jorge Carreira Maia Existe, em Portugal, uma franja pequena do eleitorado que quer, deliberadamente, destruir a democracia, não suporta os regimes liberais, sonha com o retorno ao autoritarismo. Ao votar Chega, fá-lo racionalmente. Contudo, a explosão do eleitorado do partido de André Ventura não se explica por esse tipo de eleitores. |
Eleições "livres"... » 2024-03-18 » Hélder Dias |
Este é o meu único mundo! - antónio mário santos » 2024-03-08 » António Mário Santos Comentava João Carlos Lopes , no último Jornal Torrejano, de 16 de Fevereiro, sob o título Este Mundo e o Outro, partindo, quer do pessimismo nostálgico do Jorge Carreira Maia (Este não é o meu mundo), quer da importância da memória, em Maria Augusta Torcato, para resistir «à névoa que provoca o esquecimento e cegueira», quer «na militância política e cívica sempre empenhada», da minha autoria, num país do salve-se quem puder e do deixa andar, sempre à espera dum messias que resolva, por qualquer gesto milagreiro, a sua raiva abafada de nunca ser outra coisa que a imagem crónica de pobreza. |
Plantação intensiva: do corte à escovinha e tudo em fila aos horizontes metalificados - maria augusta torcato » 2024-03-08 » Maria Augusta Torcato Não sei se por causa das minhas origens ou simplesmente da minha natureza, há em mim algo, muito forte, que me liga a árvores, a plantas, a flores, a animais, a espaços verdes ou amarelos e amplos ou exíguos, a serras mais ou menos elevadas, de onde as neblinas se descolam e evolam pelos céus, a pedras, pequenas ou pedregulhos, espalhadas ou juntinhas e a regatos e fontes que jorram espontaneamente. |
A crise das democracias liberais - jorge carreira maia » 2024-03-08 » Jorge Carreira Maia A crise das democracias liberais, que tanto e a tantos atormenta, pode residir num conflito entre a natureza humana e o regime democrático-liberal. Num livro de 2008, Democratic Authority – a philosophical framework, o filósofo David. |
A carne e os ossos - pedro borges ferreira » 2024-03-08 » Pedro Ferreira Existe um paternalismo naqueles que desenvolvem uma compreensão do mundo extensiva que muitas vezes não lhes permite ver os outros, quiçá a si próprios, como realmente são. A opinião pública tem sido marcada por reflexões sobre a falta de memória histórica como justificação do novo mundo intolerante que está para vir, adivinho eu, devido à intenção de voto que se espera no CHEGA. |
O Flautista de Hamelin... » 2024-02-28 » Hélder Dias |
Este mundo e o outro - joão carlos lopes » 2024-02-22 Escreve Jorge Carreira Maia, nesta edição, ter a certeza de que este mundo já não é o seu e que o mundo a que chamou seu acabou. “Não sei bem qual foi a hora em que as coisas mudaram, em que a megera da História me deixou para trás”, vai ele dizendo na suas palavras sempre lúcidas e brilhantes, concluindo que “vivemos já num mundo tenebroso, onde os clowns ainda não estão no poder, mas este já espera por eles, para que a História satisfaça a sua insaciável sede de sangue e miséria”. |
2032: a redenção do Planeta - jorge cordeiro simões » 2024-02-22 » Jorge Cordeiro Simões
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Avivar a memória - antónio gomes » 2024-02-22 » António Gomes Há dias atrás, no âmbito da pré-campanha eleitoral, visitei o lugar onde passei a maior parte da minha vida (47 anos), as oficinas da CP no Entroncamento. Não que tivesse saudades, mas o espaço, o cheiro e acima de tudo a oportunidade de rever alguns companheiros que ainda por lá se encontram, que ainda lá continuam a vender a sua força de trabalho, foi uma boa recompensa. |
» 2024-04-10
» Jorge Carreira Maia
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