MEMÓRIAS DE UM TEMPO OPERÁRIO - josé alves pereira
Opinião » 2021-01-23 » José Alves Pereira"No inverno, o frio era “glacial”. O ambiente matinal, gelado e tristonho, aquecia um pouco com uns latões em que se queimavam, libertando fumos, madeiros e desperdícios impregnados de óleos"
Em meados da década de 60 do século passado, ainda o centro da então vila de Torres Novas pulsava ao ritmo das fábricas. Percorrendo-a, víamos também trabalhadores de pequenas oficinas e vários mesteres. No largo da Ponte do Raro, principalmente, concentrava-se o formigueiro azul dos fatos de ganga dos operários da Vítor Réquio, Abílio Pereira Reis, oficinas dos Claras e com maior expressão da Casa Nery, centro deste texto.
O número de trabalhadores desta última rondava os 350, organizados em várias secções. As “máquinas” localizavam-se no edifício cuja frontaria, junto à estrada, aparece nas fotos. Ali funcionavam, principalmente, tornos, fresas, limadores, etc. Foi aí, entre cerca de 50 outros operários, que comecei a trabalhar em Abril de 1965. Entrado com a profissão de torneiro mecânico, foi-me destinado um antigo torno junto à parede. Trabalho primeiro, dezenas de pernos para rebaixar e facejar. Em Janeiro do ano seguinte passei a desenhador, objectivo que me levara a ingressar no Curso Industrial. Nenhuma das secções da empresa me era desconhecida, já que ali estagiara para completar o referido curso.
É um pouco desse tempo que aqui recordo como memória, a que associo outras que ouvi contar. O período de trabalho semanal era de 48 horas, 9 horas diárias, excepto à segunda-feira, em que se saía às 17, dia do mercado semanal, e ao sábado, em que se trabalhava na parte da manhã. Dizia-se que era prática antiga, trabalhar todo o sábado, e ao domingo ir-se “limpar a máquina”. O almoço decorria entre o meio-dia e a as 13 horas. Mal a “vaca” soava, uma torrente humana, de azul vestida, espalhava-se pelas ruas. Alguns operários vestiam calça e casaco de ganga enquanto os mais novos enfarpelavam o chamado fato de macaco. Se muitos saíam com a vestimenta de trabalho, que por vezes usavam mesmo no dia-a-dia na rua, outros ainda “queimavam” uns minutos para mudar para “civil”.
Parece hoje impossível como nesse período se ia, a pé, almoçar a sítios como a rua de Santo António, trepando a ladeira dos Canitos, ou às Tufeiras ou mesmo às Lapas, embora aqui de bicicleta. Era um burburinho! Nas entradas a “vaca” berrava duas vezes. A primeira, cinco minutos antes da hora, a segunda assinalando o fim do período de entrada. O controlo de acessos, aos olhos dos sofisticados sistemas de hoje, era curioso. Cada trabalhador tinha umas “moedas” em chapa com o seu número gravado; após o primeiro toque introduzia uma “moeda” na ranhura de uma caixa. Ao segundo toque um outro trabalhador, em geral do escritório, cerrava a caixa, confirmando as entradas. Alguém mais atardado teria que aguardar uma hora para pegar ao serviço, não sem antes solicitar a permissão patronal. Uma gestão hoje incompreensível, já que a máquina ficava parada nesse período.
O salário era pago à semana num guichet das oficinas, entregue em pequenas caixas individuais, em chapa, contendo o dinheiro e uma tira de papel com a descrição dos descontos. Comecei por ganhar 30$40/dia. Não me atrevo a converter em euros porque seria tão irrisório quanto incomparável.
Numa vala, ao longo da oficina, girava um veio accionado por um motor a gasóleo. A partir dele, como era usual no início do século, saíam correias movimentando tambores rodando no ar e dali baixando para accionar as máquinas. A maioria, todavia, funcionava já com motor eléctrico autónomo. As peças eram transportadas numas zorras pesadas que circulavam nuns carris empurradas pelos chamados serventes.
Quando um candidato se apresentava a exame profissional para ingressar na empresa, era sujeito a uma prova prática. Indicada a máquina, recebia os materiais, desenhos e especificações técnicas. Discretamente, havia quem passasse deixando a dica de que aquele trabalho não deveria ser feito em menos de X horas. Uma coisa era o trabalho em rotina diária, outra em prova de exame, passando este tempo a referência normal. Por vezes, uma limalha saltava e alojava-se num olho desprotegido; se a coisa não se afigurava complicada, um outro colega, com mais perícia, munido de uma “mortalha” de enrolar o tabaco dos cigarros, lá retirava a apara.
No inverno, o frio era “glacial”. O ambiente matinal, gelado e tristonho, aquecia um pouco com uns latões em que se queimavam, libertando fumos, madeiros e desperdícios impregnados de óleos, transformando os operários em vultos, deixando os olhos vermelhos e ardentes. O manuseio de metais e ferramentas, geladas durante a noite, fazia-se com a experiência de quão dolorosa era uma pancada nas mãos engadanhadas.
Contaram-me que tendo sido adquirida, anos depois, uma máquina com CNC - sistema com alguma complexidade técnica - em dado momento avariou-se, sem motivo aparente, e parou. Chamados os técnicos da empresa fornecedora, constatou-se que devido às baixas temperaturas de laboração os óleos, mais viscosos, não fluíam. No verão era o contrário. Foi necessário instalar uns apetrechos rudimentares para “criar um ambiente” mais ameno.
As instalações sanitárias correntes, no interior da oficina, eram constituídas por uns cubículos com a conhecida “turca”, loiça rasante ao chão. Os espaços encerravam-se com uma portinhola aberta em baixo e em cima, sendo assim possível verificar se estavam ocupados. Um dia alguém colocou umas velhas botas nos apoios da “turca”, de modo a serem vistas por baixo. O encarregado foi passando sem que o “ocupante” se despachasse. Parecendo exagerado o tempo decorrido espreitou, constatando o logro. Um sorriso comedido, virado para dentro, perpassou por alguns rostos.
Nota final: a escassos metros do meu torno, num outro bem maior, laborava o meu pai; o seu posto de trabalho foi aquele durante anos, excepto quando numa manhã de Abril de 1953 a PIDE ali o foi buscar, e a outros camaradas, para o encarcerar no forte de Caxias. Seis meses passados, após julgamento e absolvição no tribunal da Boa-Hora (Lisboa), regressou ao seu local de laboração. Da Casa Nery saíram muitos, e em várias ocasiões, dos que o fascismo perseguiu e enclausurou. Ali encontraram, no regresso, o seu “ganha pão”, o que nem sempre acontecia noutros lados.
“No inverno, o frio era “glacial”. O ambiente matinal, gelado e tristonho, aquecia um pouco com uns latões em que se queimavam, libertando fumos, madeiros e desperdícios impregnados de óleos, transformando os operários em vultos, deixando os olhos vermelhos e ardentes”
MEMÓRIAS DE UM TEMPO OPERÁRIO - josé alves pereira
Opinião » 2021-01-23 » José Alves PereiraNo inverno, o frio era “glacial”. O ambiente matinal, gelado e tristonho, aquecia um pouco com uns latões em que se queimavam, libertando fumos, madeiros e desperdícios impregnados de óleos
Em meados da década de 60 do século passado, ainda o centro da então vila de Torres Novas pulsava ao ritmo das fábricas. Percorrendo-a, víamos também trabalhadores de pequenas oficinas e vários mesteres. No largo da Ponte do Raro, principalmente, concentrava-se o formigueiro azul dos fatos de ganga dos operários da Vítor Réquio, Abílio Pereira Reis, oficinas dos Claras e com maior expressão da Casa Nery, centro deste texto.
O número de trabalhadores desta última rondava os 350, organizados em várias secções. As “máquinas” localizavam-se no edifício cuja frontaria, junto à estrada, aparece nas fotos. Ali funcionavam, principalmente, tornos, fresas, limadores, etc. Foi aí, entre cerca de 50 outros operários, que comecei a trabalhar em Abril de 1965. Entrado com a profissão de torneiro mecânico, foi-me destinado um antigo torno junto à parede. Trabalho primeiro, dezenas de pernos para rebaixar e facejar. Em Janeiro do ano seguinte passei a desenhador, objectivo que me levara a ingressar no Curso Industrial. Nenhuma das secções da empresa me era desconhecida, já que ali estagiara para completar o referido curso.
É um pouco desse tempo que aqui recordo como memória, a que associo outras que ouvi contar. O período de trabalho semanal era de 48 horas, 9 horas diárias, excepto à segunda-feira, em que se saía às 17, dia do mercado semanal, e ao sábado, em que se trabalhava na parte da manhã. Dizia-se que era prática antiga, trabalhar todo o sábado, e ao domingo ir-se “limpar a máquina”. O almoço decorria entre o meio-dia e a as 13 horas. Mal a “vaca” soava, uma torrente humana, de azul vestida, espalhava-se pelas ruas. Alguns operários vestiam calça e casaco de ganga enquanto os mais novos enfarpelavam o chamado fato de macaco. Se muitos saíam com a vestimenta de trabalho, que por vezes usavam mesmo no dia-a-dia na rua, outros ainda “queimavam” uns minutos para mudar para “civil”.
Parece hoje impossível como nesse período se ia, a pé, almoçar a sítios como a rua de Santo António, trepando a ladeira dos Canitos, ou às Tufeiras ou mesmo às Lapas, embora aqui de bicicleta. Era um burburinho! Nas entradas a “vaca” berrava duas vezes. A primeira, cinco minutos antes da hora, a segunda assinalando o fim do período de entrada. O controlo de acessos, aos olhos dos sofisticados sistemas de hoje, era curioso. Cada trabalhador tinha umas “moedas” em chapa com o seu número gravado; após o primeiro toque introduzia uma “moeda” na ranhura de uma caixa. Ao segundo toque um outro trabalhador, em geral do escritório, cerrava a caixa, confirmando as entradas. Alguém mais atardado teria que aguardar uma hora para pegar ao serviço, não sem antes solicitar a permissão patronal. Uma gestão hoje incompreensível, já que a máquina ficava parada nesse período.
O salário era pago à semana num guichet das oficinas, entregue em pequenas caixas individuais, em chapa, contendo o dinheiro e uma tira de papel com a descrição dos descontos. Comecei por ganhar 30$40/dia. Não me atrevo a converter em euros porque seria tão irrisório quanto incomparável.
Numa vala, ao longo da oficina, girava um veio accionado por um motor a gasóleo. A partir dele, como era usual no início do século, saíam correias movimentando tambores rodando no ar e dali baixando para accionar as máquinas. A maioria, todavia, funcionava já com motor eléctrico autónomo. As peças eram transportadas numas zorras pesadas que circulavam nuns carris empurradas pelos chamados serventes.
Quando um candidato se apresentava a exame profissional para ingressar na empresa, era sujeito a uma prova prática. Indicada a máquina, recebia os materiais, desenhos e especificações técnicas. Discretamente, havia quem passasse deixando a dica de que aquele trabalho não deveria ser feito em menos de X horas. Uma coisa era o trabalho em rotina diária, outra em prova de exame, passando este tempo a referência normal. Por vezes, uma limalha saltava e alojava-se num olho desprotegido; se a coisa não se afigurava complicada, um outro colega, com mais perícia, munido de uma “mortalha” de enrolar o tabaco dos cigarros, lá retirava a apara.
No inverno, o frio era “glacial”. O ambiente matinal, gelado e tristonho, aquecia um pouco com uns latões em que se queimavam, libertando fumos, madeiros e desperdícios impregnados de óleos, transformando os operários em vultos, deixando os olhos vermelhos e ardentes. O manuseio de metais e ferramentas, geladas durante a noite, fazia-se com a experiência de quão dolorosa era uma pancada nas mãos engadanhadas.
Contaram-me que tendo sido adquirida, anos depois, uma máquina com CNC - sistema com alguma complexidade técnica - em dado momento avariou-se, sem motivo aparente, e parou. Chamados os técnicos da empresa fornecedora, constatou-se que devido às baixas temperaturas de laboração os óleos, mais viscosos, não fluíam. No verão era o contrário. Foi necessário instalar uns apetrechos rudimentares para “criar um ambiente” mais ameno.
As instalações sanitárias correntes, no interior da oficina, eram constituídas por uns cubículos com a conhecida “turca”, loiça rasante ao chão. Os espaços encerravam-se com uma portinhola aberta em baixo e em cima, sendo assim possível verificar se estavam ocupados. Um dia alguém colocou umas velhas botas nos apoios da “turca”, de modo a serem vistas por baixo. O encarregado foi passando sem que o “ocupante” se despachasse. Parecendo exagerado o tempo decorrido espreitou, constatando o logro. Um sorriso comedido, virado para dentro, perpassou por alguns rostos.
Nota final: a escassos metros do meu torno, num outro bem maior, laborava o meu pai; o seu posto de trabalho foi aquele durante anos, excepto quando numa manhã de Abril de 1953 a PIDE ali o foi buscar, e a outros camaradas, para o encarcerar no forte de Caxias. Seis meses passados, após julgamento e absolvição no tribunal da Boa-Hora (Lisboa), regressou ao seu local de laboração. Da Casa Nery saíram muitos, e em várias ocasiões, dos que o fascismo perseguiu e enclausurou. Ali encontraram, no regresso, o seu “ganha pão”, o que nem sempre acontecia noutros lados.
“No inverno, o frio era “glacial”. O ambiente matinal, gelado e tristonho, aquecia um pouco com uns latões em que se queimavam, libertando fumos, madeiros e desperdícios impregnados de óleos, transformando os operários em vultos, deixando os olhos vermelhos e ardentes”
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