O fundamentalismo eleitoral (II) - pedro ferreira
" O cidadão comum não é estúpido? Não conheço nenhuma evidência que o sugira"
Na primeira parte desta crónica, tentei criar no leitor uma postura crítica sobre aquele que acho ser o maior dogma da nossa sociedade, de forma a ficar mais receptivo a alternativas. Se no fim de a leres não ganhaste uma aversão ao uso de eleições para atribuir cargos públicos e nem te questionaste sobre alternativas a este método, ficaste pelo menos a saber qual era a minha intenção. Agora, passo a argumentar que a melhor forma de resolvermos os problemas da nossa democracia é sorteando os cidadãos comuns, tão comumente representados como pessoas ignorantes e estúpidas, e convidá-los a fazerem parte da nossa Assembleia da República.
Ao acabarmos com as eleições, o método de selecção dos futuros deputados seria um sorteio que incluiria todas as pessoas do país que não tivessem menos de uma certa idade nem apresentassem incapacidades intelectuais. Este sorteio garante que as pessoas convidadas serão representativas de toda a população portuguesa: Haverá cabeleireiros, pedreiros, operários, enfermeiros, padres, engenheiros, estudantes, reformados e desempregados de profissão; que ideologicamente são comunistas, sociais-democratas, socialistas, liberais e anarquistas, todos na sua devida proporção. Da mesma forma, mulheres e homens sentarão cada um deles 50% dos lugares. Sobre representar certas regiões do país que têm menos habitantes, é uma possibilidade, da mesma forma que garantir representatividade étnica ou religiosa. As possibilidades são ilimitadas, e o debate sobre elas deveria ser uma constante.
Há algo que estas pessoas não serão: políticos de carreira. É óbvio que, porventura, haverá uma ou duas pessoas que efectivamente o serão, dada a natureza da aleatoriedade, mas nunca em número suficiente para boicotar as discussões ou favorecerem lobbies e interesses partidários através do seu voto. Estratégias partidárias como votar em bloco, bloquear as propostas de outros e ignorar assuntos iminentes por não serem populares ou importantes na óptica de umas próximas eleições deixarão de existir. Qualquer tentativa por parte dos grupos de interesse de manipular as decisões desta assembleia será exponencialmente mais difícil, e mais difícil ainda quanto maior foi o número de cidadãos, visto que cada uma destas pessoas tomará a sua decisão de voto individualmente e sempre informada por especialistas da área, sejam eles académicos ou membros de organizações sociais, e também porque todos eles estarão garantidamente no poder apenas por um período de tempo limitado, sendo depois substituídos por outros cidadãos comuns que teriam de ser novamente corrompidos e em larga escala. Poderiam ainda ser implementados outros mecanismos que assegurassem ainda mais a imparcialidade das decisões, como a seleção aleatória dos membros desta assembleia para os diversos grupos de trabalho e comissões de inquérito. Em suma, as sessões parlamentares passariam a ser semelhantes a um referendo em que a população está bem informada: democracia.
Isto foi apenas um exemplo, pouco preciso, de como o nosso poder político se poderia reorganizar a nível nacional. É possível integrar os sorteios em sistemas híbridos, em que a assembleia teria simultaneamente membros eleitos e membros sorteados. Ou manter políticos eleitos, mas criar uma assembleia de cidadãos que os pode demitir e nomear certos cargos. Também se pode reorganizar criando vários órgãos com competências diferentes: por exemplo, várias assembleias de cidadãos sorteados em que uma seleciona problemas a serem resolvidos, outra legisla e outra ainda aprova ou rejeita a proposta de lei. Autores como Brett Henning, Helene Landemore e David Van Reybrouck exploram todas estas possibilidades de forma mais aprofundada (fica a sugestão).
Isto não é utópico? Pode parecer utópico, mas não o é, na medida em que há vários projectos-piloto com resultados que provam o contrário. Na Colúmbia Britânica, Canadá, foi uma assembleia de cidadãos que alterou o método eleitoral dos órgãos de soberania. Por toda a Europa, há assembleias de cidadãos que criam propostas de lei para a assembleia de deputados eleitos aprovar (e que, por serem medidas que não beneficiam os partidos, são ignoradas e rejeitadas). Na Irlanda, país em que a maioria é católica fervorosa, foi uma assembleia de cidadãos que chegou a um consenso sobre o casamento homossexual, acabando com a polarização sobre este tema.
O cidadão comum não é estúpido? Não conheço nenhuma evidência que o sugira. As pessoas, no máximo, podem racionalmente ignorantes, algo que se aplica a todos nós. Porque haveria alguém de aprender sobre algo, por exemplo política, se não ganha nada com isso? Parece-me uma adaptação do ser humano relativamente boa no que toca a garantir a sobrevivência da espécie. Há apenas que garantir que as pessoas selecionadas terão os incentivos necessários para que estejam informadas sobre os assuntos em votação.
Como é que é democrático se eu deixo de participar? Há que recordar que os mecanismos actuais de participação directa, como as petições, continuariam a existir. Sessões abertas à população, tanto a nível local como nacional, também poderiam ser implementadas. Restringir a assembleia apenas às pessoas que foram selecionadas é uma forma de garantir que a assembleia de cidadãos é representativa da população. Abrir todas sessões a quem quiser participar, iria enviesar a amostra, porque as pessoas que iriam participar nelas são já um subgrupo em si, não representativo da população.
Um sorteio, por ser aleatório, não poderá escolher pessoas que não representam os portugueses?
Em teoria, sim, se a escolha fosse estritamente aleatória. No entanto, há métodos ponderados que garantem que as pessoas escolhidas serão completamente representativas da população segundo determinados parâmetros (género, idade, habilitação literária, etc…).
Se for escolhido, sou obrigado a ir? Ninguém seria obrigado a participar, até porque seria contraproducente. Mas a proposta feita seria semelhante à de um deputado, com um bom salário, ajudas de custo e a garantia de voltar para o anterior emprego no fim da função.
Esta é a segunda parte de 3 crónicas. Na próxima, farei uma proposta a todos os torrejanos daquilo que no meu entender seria possível criar no nosso concelho, tanto no curto como médio/longo prazo. Mas este é um debate que todos os munícipes devem participar. O futuro é agora.
O fundamentalismo eleitoral (II) - pedro ferreira
O cidadão comum não é estúpido? Não conheço nenhuma evidência que o sugira
Na primeira parte desta crónica, tentei criar no leitor uma postura crítica sobre aquele que acho ser o maior dogma da nossa sociedade, de forma a ficar mais receptivo a alternativas. Se no fim de a leres não ganhaste uma aversão ao uso de eleições para atribuir cargos públicos e nem te questionaste sobre alternativas a este método, ficaste pelo menos a saber qual era a minha intenção. Agora, passo a argumentar que a melhor forma de resolvermos os problemas da nossa democracia é sorteando os cidadãos comuns, tão comumente representados como pessoas ignorantes e estúpidas, e convidá-los a fazerem parte da nossa Assembleia da República.
Ao acabarmos com as eleições, o método de selecção dos futuros deputados seria um sorteio que incluiria todas as pessoas do país que não tivessem menos de uma certa idade nem apresentassem incapacidades intelectuais. Este sorteio garante que as pessoas convidadas serão representativas de toda a população portuguesa: Haverá cabeleireiros, pedreiros, operários, enfermeiros, padres, engenheiros, estudantes, reformados e desempregados de profissão; que ideologicamente são comunistas, sociais-democratas, socialistas, liberais e anarquistas, todos na sua devida proporção. Da mesma forma, mulheres e homens sentarão cada um deles 50% dos lugares. Sobre representar certas regiões do país que têm menos habitantes, é uma possibilidade, da mesma forma que garantir representatividade étnica ou religiosa. As possibilidades são ilimitadas, e o debate sobre elas deveria ser uma constante.
Há algo que estas pessoas não serão: políticos de carreira. É óbvio que, porventura, haverá uma ou duas pessoas que efectivamente o serão, dada a natureza da aleatoriedade, mas nunca em número suficiente para boicotar as discussões ou favorecerem lobbies e interesses partidários através do seu voto. Estratégias partidárias como votar em bloco, bloquear as propostas de outros e ignorar assuntos iminentes por não serem populares ou importantes na óptica de umas próximas eleições deixarão de existir. Qualquer tentativa por parte dos grupos de interesse de manipular as decisões desta assembleia será exponencialmente mais difícil, e mais difícil ainda quanto maior foi o número de cidadãos, visto que cada uma destas pessoas tomará a sua decisão de voto individualmente e sempre informada por especialistas da área, sejam eles académicos ou membros de organizações sociais, e também porque todos eles estarão garantidamente no poder apenas por um período de tempo limitado, sendo depois substituídos por outros cidadãos comuns que teriam de ser novamente corrompidos e em larga escala. Poderiam ainda ser implementados outros mecanismos que assegurassem ainda mais a imparcialidade das decisões, como a seleção aleatória dos membros desta assembleia para os diversos grupos de trabalho e comissões de inquérito. Em suma, as sessões parlamentares passariam a ser semelhantes a um referendo em que a população está bem informada: democracia.
Isto foi apenas um exemplo, pouco preciso, de como o nosso poder político se poderia reorganizar a nível nacional. É possível integrar os sorteios em sistemas híbridos, em que a assembleia teria simultaneamente membros eleitos e membros sorteados. Ou manter políticos eleitos, mas criar uma assembleia de cidadãos que os pode demitir e nomear certos cargos. Também se pode reorganizar criando vários órgãos com competências diferentes: por exemplo, várias assembleias de cidadãos sorteados em que uma seleciona problemas a serem resolvidos, outra legisla e outra ainda aprova ou rejeita a proposta de lei. Autores como Brett Henning, Helene Landemore e David Van Reybrouck exploram todas estas possibilidades de forma mais aprofundada (fica a sugestão).
Isto não é utópico? Pode parecer utópico, mas não o é, na medida em que há vários projectos-piloto com resultados que provam o contrário. Na Colúmbia Britânica, Canadá, foi uma assembleia de cidadãos que alterou o método eleitoral dos órgãos de soberania. Por toda a Europa, há assembleias de cidadãos que criam propostas de lei para a assembleia de deputados eleitos aprovar (e que, por serem medidas que não beneficiam os partidos, são ignoradas e rejeitadas). Na Irlanda, país em que a maioria é católica fervorosa, foi uma assembleia de cidadãos que chegou a um consenso sobre o casamento homossexual, acabando com a polarização sobre este tema.
O cidadão comum não é estúpido? Não conheço nenhuma evidência que o sugira. As pessoas, no máximo, podem racionalmente ignorantes, algo que se aplica a todos nós. Porque haveria alguém de aprender sobre algo, por exemplo política, se não ganha nada com isso? Parece-me uma adaptação do ser humano relativamente boa no que toca a garantir a sobrevivência da espécie. Há apenas que garantir que as pessoas selecionadas terão os incentivos necessários para que estejam informadas sobre os assuntos em votação.
Como é que é democrático se eu deixo de participar? Há que recordar que os mecanismos actuais de participação directa, como as petições, continuariam a existir. Sessões abertas à população, tanto a nível local como nacional, também poderiam ser implementadas. Restringir a assembleia apenas às pessoas que foram selecionadas é uma forma de garantir que a assembleia de cidadãos é representativa da população. Abrir todas sessões a quem quiser participar, iria enviesar a amostra, porque as pessoas que iriam participar nelas são já um subgrupo em si, não representativo da população.
Um sorteio, por ser aleatório, não poderá escolher pessoas que não representam os portugueses?
Em teoria, sim, se a escolha fosse estritamente aleatória. No entanto, há métodos ponderados que garantem que as pessoas escolhidas serão completamente representativas da população segundo determinados parâmetros (género, idade, habilitação literária, etc…).
Se for escolhido, sou obrigado a ir? Ninguém seria obrigado a participar, até porque seria contraproducente. Mas a proposta feita seria semelhante à de um deputado, com um bom salário, ajudas de custo e a garantia de voltar para o anterior emprego no fim da função.
Esta é a segunda parte de 3 crónicas. Na próxima, farei uma proposta a todos os torrejanos daquilo que no meu entender seria possível criar no nosso concelho, tanto no curto como médio/longo prazo. Mas este é um debate que todos os munícipes devem participar. O futuro é agora.
![]() Imagino que as últimas eleições terão sido oportunidade para belos e significativos encontros. Não é difícil pensar, sem ficar fora da verdade, que, em muitas empresas, patrões e empregados terão ambos votado no Chega. |
![]() "Hire a clown, get a circus" * Ele é antissistema. Prometeu limpar o aparelho político de toda a corrupção. Não tem filtros e, como o povo gosta, “chama os bois pelo nome”, não poupando pessoas ou entidades. |
![]() A eleição de um novo Papa é um acontecimento sempre marcante, apesar de se viver, na Europa, em sociedades cada vez mais estranhas ao cristianismo. Uma das grandes preocupações, antes, durante e após a eleição de Leão XIV, era se o sucessor de Francisco seria conservador ou progressista. |
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![]() Agora que nos estamos a aproximar, no calendário católico, da Páscoa, talvez valha a pena meditar nos versículos 36, 37 e 38, do Capítulo 18, do Evangelho de João. Depois de entregue a Pôncio Pilatos, Jesus respondeu à pergunta deste: Que fizeste? Dito de outro modo: de que és culpado? Ora, a resposta de Jesus é surpreendente: «O meu reino não é deste mundo. |