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Ser Torrejano - josé ricardo costa

Opinião  »  2020-11-21  »  José Ricardo Costa

"Nós, torrejanos, somos outras coisas antes de sermos torrejanos, melhor dizendo, só somos torrejanos porque somos outras coisas"

Desço a rua dos Anjos quando o meu cérebro é de repente apoquentado por uma radical e inquietante questão. Não o pavor diante do silêncio e escuridão do espaço cósmico ou por não saber se quando esticar o pernil irei dar com a Audrey Hepburn a cantar o Moon River numa matiné de domingo no Virgínia ou com um cenário de Bosch. Agora, no ocaso da minha existência, quando me preparo para atravessar o Aqueronte, quero é saber o que é ser torrejano. Inspirando-me no alexandrino verso «Zé brasileiro, português de Braga», interrogo-me sobre que coisa é esta que eu sou, não, sei lá, como professor de filosofia ou franco-apreciador de tremoços e amendoins mas como Zé português, português de Torres Novas e se tal condição faz de mim um português diferente de um outro de Beja ou Penafiel.

Nós, torrejanos, somos outras coisas antes de sermos torrejanos, melhor dizendo, só somos torrejanos porque somos outras coisas. Não fôssemos seres vivos, animais (embora uns mais que outros), vertebrados ou mamíferos, e também não seríamos torrejanos mas provavelmente borboletas ou girassóis. Mas também não é por estar há décadas na avenida ou por comer, dormir e ladrar em Torres Novas que um castanheiro e um cão são torrejanos. Ser um ser vivo, animal ou vertebrado é por isso irrelevante para a minha torrejanidade.

E quanto a ser europeu ou ser humano? Bem, torres Novas está em Portugal, que está na Europa que, por sua vez, está no mundo, significando isto que não se pode ser torrejano sem ser europeu nem se pode ser europeu sem ser homem. Só que a probabilidade de um europeu, e mais ainda de ser um humano, ser torrejano é quase tão elevada como a de Cristiano Ronaldo terminar a carreira no Águias de Alpiarça. Daí a sua irrelevância para a minha torrejanidade.

Já saber-me português é mais interessante. Basta estar em Badajoz a comprar caramelos para perceber que sou português. Daí aproximar-se mais da minha torrejanidade do que homem ou europeu. Ainda assim demasiado geral, pois se ser português é condição necessária para se ser torrejano o que mais há são portugueses que não o são. Basta ir ali ao Entroncamento ou a Alcanena. Já agora, dispenso também isso de ser ribatejano, apesar de também o ser. Fosse de Santarém, Salvaterra ou Golegã e poderia seguir a pista ribatejana uma vez que o seu peso para entender a minha putativa scalabitanidade, salvaterridade ou golegãnidade seria muito maior.

Diria mesmo que um torrejano carece de uma forte identidade regional ou mesmo sociológica. Torres Novas não está no norte nem no sul. Não é litoral nem raiana. Não é grande como uma cidade nem pequena como uma aldeia. Vai-se a Lisboa assim “Vou ali e já venho” mas nada temos que ver com Lisboa e dizem mesmo muitos torrejanos que o melhor de Lisboa é a estrada para Torres Novas. Tem serra sem ser serrana, pressente-se a lezíria mas não há touros e campinos. É difícil pensar num português de Olhão, Bragança, Serpa ou Ponte de Lima, sem pensar que é algarvio, transmontano, alentejano ou minhoto mas ninguém associa um torrejano a um ribatejano de gema, seja na versão popular ou na versão agro-beto. Em suma, o torrejano surge despojado de uma qualquer mitologia regional, sem vestígios de uma tipicidade que nem o célebre cabrito degustado por Saramago conseguirá alimentar. É caso para dizer que com a discreta mediania etnográfica de Torres Novas será mais apropriado falar num progresso do centro do que no centro do progresso.

Chegado a esta fase aguda do problema, sigo o que exige o bom senso quando se chega à fase aguda de um problema. Não estou a pensar num livro de auto-ajuda ou em começar a opinar nas caixas de comentários dos jornais para me libertar do excesso de adrenalina e espremer o córtex como se fosse um esfregão. Não, recorro aos clássicos. Neste caso, Aristóteles, e para perceber o modo como a alma e o corpo se relacionam. Enquanto para Platão o homem é sobretudo uma alma que por azar está ligada a um corpo, sendo este tão importante para a nossa identidade como uma ventoinha no Pólo Norte, já para Aristóteles o homem é uma unidade feita de alma e corpo. Mas já lá vamos.

E anão que sou, é ainda às cavalitas de Aristóteles que sou levado a perceber que a minha alma não é toda igual. Há uma parte dela que é racional e que eu partilho com um árabe, um guatemalteco ou um irlandês quando não está bêbedo: a que me faz perceber que o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos. Outra parte diz-me que sou português, sendo esta igual à de um fafense, idanhense ou lacobrigense. Percebo isso quando junto um pastel de nata a um café, quando digo «Bem sei eu!» para mostrar que não sei ou quando o Éder me deu uma alegria.

Agora, o que um fafense, um idanhense ou um lacobrigense não têm é uma alma torrejana. Lá terão as deles mas não é a minha. Porque do mesmo modo que cada pessoa tem uma identidade física graças a um corpo que é só seu e que possibilita uma experiência do mundo única (no mundo com este corpo só estou eu), também há uma parte da alma de um torrejano que só existe em virtude de uma realidade física torrejana que é única.

Assim como todos os portugueses têm pernas, braços, nariz e orelhas, também em todas as terras portuguesas há edifícios, ruas, praças, avenidas, vielas, jardins, rios, pontes, campos de futebol, escolas, lojas, cafés. Acontece que Torres Novas é o meu corpo, o corpo com o qual comecei a andar no mundo e a ver o mundo e do mesmo modo que foi com as experiências do meu corpo no mundo que a minha alma foi erguendo um arquivo de memórias que me deram uma identidade, também ter nascido e vivido nesta terra fez abrir uma arquivo de imagens, sons, cheiros e dinâmicas sociais únicas e irrepetíveis. Só com torrejanos partilho a experiência de atravessar certos lugares que são mais belos no Inverno e outros na Primavera. E também de ter jogado, brincado, namorado, conversado, lido, pensado, alegrado ou entristecido em lugares que só aqui existem tal como os sinais num corpo.

Ser torrejano não é nada de especial quando comparado com ser outras coisas. Mas é como o pequeno rio de Alberto Caeiro face ao Tejo. É-se torrejano e facilmente se percebe que não é preciso ser mais nada.

 

 

 

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