Hipocrisia colectiva, por Inês Vidal
Opinião » 2020-01-30 » Inês Vidal"São fórmulas que matam e moem tal como o vinho, que continua a fazer vítimas em pleno século XXI."
Este ano há festa da Benção do Gado, em Riachos. Uma festa de raízes, uma homenagem às origens do povo riachense. Pelo menos é essa a sua intenção primeira. Recordo, a propósito, quando numa das vezes em que percorri as ruas engalanadas da vila por altura das festas, uma das coisas que me chamou a atenção nos quadros populares que recriam essas tais raízes riachenses, foi o facto de tão natural e repetidamente se recordar a personagem do homem embriagado, copo na mão, garrafão aos pés. Chamou-me a atenção não só por entender que as origens dos riacheses vão certamente muito além disso, mas também pela naturalidade como algo como a embriaguez, é erguida bandeira de um povo.
Utilizo um quadro riachense, porque foi aí que primeiramente me debrucei sobre este assunto, mas serve apenas como exemplo. A verdade é que esta aceitação do álcool como parte integrante do nosso dia-a-dia, acontece um pouco por todo o lado. E, admito, é facto que não me deixa nada confortável. Números elevados da violência, acidentes e incidentes, acontecem exactamente na sequência de quadros de alcoolismo. E esta é, estranhamente, uma realidade que aceitamos, enaltecemos e, como já se viu, tornamos bandeira de um país.
Um destes dias passeava pela baixa do Porto, mais propriamente pela Rua das Flores, rodeada pelos muitos turistas que actualmente invadem a Invicta. Entre caixas de electricidade divertidamente decoradas e mil e uma lojas que homenageiam as origens portuguesas, onde não faltam referências a sardinhas, galos de Barcelos e azulejos, entrei numa loja de vinhos. Uma das muitas que se multiplica não só pelo Porto, como por todo o país. Uma moda que toma o nome de winebar, uma espécie de taberna, mas em bom, com copos de balão no lugar dos famosos malhões do Zé da Ana.
Entrei na loja e além de paredes repletas de vinhos de todas as castas e regiões, podia provar-se vinho a copo. Bastava para isso, imagine-se, um cartão pré-pago que nos dava acesso ao vinho exposto para prova. Era a única portuguesa, obviamente. De resto, apenas turistas, que achavam normal servirem-se copos de vinho numa espécie de multibanco refrigerado, bastando para isso um cartão pré-pago. Um cenário ligeiramente comercial, para turista ver, com um pé a fugir para os afamados coffeshop holandeses, na medida em que exploram o lado comercial do lazer, mas sem metade da graça. Eu, pelo menos, não achei metade da graça.
Enquanto por ali estive, não pude deixar de ser invadida pela lembrança do boneco de garrafão aos pés, que assumimos como nossa memória colectiva e de como o consumo excessivo de álcool nos mata, de como as mulheres de gerações anteriores, e muitas nos dias que correm, sofreram e sofrem às mãos do vinho, de como continuamos a morrer na estrada graças a ele, e de como esta geração continua a achar tudo isso normal e a divinizar o vinho. Sempre, desde que em copos balão.
E entre divagações próprias de quem pensa ou de quem está em lojas de vinho, não percebi bem, questionei-me sobre se a nossa hipocrisia, também ela colectiva, nos permitiria aceitar e ser coniventes com um espaço destes, mas que albergasse outras fontes de diversão - ou de problemas - que não o vinho? Uma espécie de Eurodisney para adultos, uma montanha russa na ponta de um charro, de um risco ou de um caldo. Um espaço onde nos sentássemos e fossemos convidados a experimentar, desde que com cartão pré-pago claro, numa espécie de viagem cultural quase, tudo o que de melhor há a oferecer nas produções dos vários pontos do mundo.
Acredito que não, mas perguntou-me porquê. São fórmulas que matam e moem tal como o vinho, que continua a fazer vítimas em pleno século XXI. É a hipocrisia colectiva, social, aquela que nos faz continuar a olhar de lado e a ostracizar quem troca seringas na farmácia, e a aplaudir o homem do garrafão aos pés, ainda que na sua versão moderna de engravatado de dia, embriagado à noite, que vê justificadas as suas atitudes num copo de vinho socialmente aceite, bandeira orgulhosa de uma nação.
Hipocrisia colectiva, por Inês Vidal
Opinião » 2020-01-30 » Inês VidalSão fórmulas que matam e moem tal como o vinho, que continua a fazer vítimas em pleno século XXI.
Este ano há festa da Benção do Gado, em Riachos. Uma festa de raízes, uma homenagem às origens do povo riachense. Pelo menos é essa a sua intenção primeira. Recordo, a propósito, quando numa das vezes em que percorri as ruas engalanadas da vila por altura das festas, uma das coisas que me chamou a atenção nos quadros populares que recriam essas tais raízes riachenses, foi o facto de tão natural e repetidamente se recordar a personagem do homem embriagado, copo na mão, garrafão aos pés. Chamou-me a atenção não só por entender que as origens dos riacheses vão certamente muito além disso, mas também pela naturalidade como algo como a embriaguez, é erguida bandeira de um povo.
Utilizo um quadro riachense, porque foi aí que primeiramente me debrucei sobre este assunto, mas serve apenas como exemplo. A verdade é que esta aceitação do álcool como parte integrante do nosso dia-a-dia, acontece um pouco por todo o lado. E, admito, é facto que não me deixa nada confortável. Números elevados da violência, acidentes e incidentes, acontecem exactamente na sequência de quadros de alcoolismo. E esta é, estranhamente, uma realidade que aceitamos, enaltecemos e, como já se viu, tornamos bandeira de um país.
Um destes dias passeava pela baixa do Porto, mais propriamente pela Rua das Flores, rodeada pelos muitos turistas que actualmente invadem a Invicta. Entre caixas de electricidade divertidamente decoradas e mil e uma lojas que homenageiam as origens portuguesas, onde não faltam referências a sardinhas, galos de Barcelos e azulejos, entrei numa loja de vinhos. Uma das muitas que se multiplica não só pelo Porto, como por todo o país. Uma moda que toma o nome de winebar, uma espécie de taberna, mas em bom, com copos de balão no lugar dos famosos malhões do Zé da Ana.
Entrei na loja e além de paredes repletas de vinhos de todas as castas e regiões, podia provar-se vinho a copo. Bastava para isso, imagine-se, um cartão pré-pago que nos dava acesso ao vinho exposto para prova. Era a única portuguesa, obviamente. De resto, apenas turistas, que achavam normal servirem-se copos de vinho numa espécie de multibanco refrigerado, bastando para isso um cartão pré-pago. Um cenário ligeiramente comercial, para turista ver, com um pé a fugir para os afamados coffeshop holandeses, na medida em que exploram o lado comercial do lazer, mas sem metade da graça. Eu, pelo menos, não achei metade da graça.
Enquanto por ali estive, não pude deixar de ser invadida pela lembrança do boneco de garrafão aos pés, que assumimos como nossa memória colectiva e de como o consumo excessivo de álcool nos mata, de como as mulheres de gerações anteriores, e muitas nos dias que correm, sofreram e sofrem às mãos do vinho, de como continuamos a morrer na estrada graças a ele, e de como esta geração continua a achar tudo isso normal e a divinizar o vinho. Sempre, desde que em copos balão.
E entre divagações próprias de quem pensa ou de quem está em lojas de vinho, não percebi bem, questionei-me sobre se a nossa hipocrisia, também ela colectiva, nos permitiria aceitar e ser coniventes com um espaço destes, mas que albergasse outras fontes de diversão - ou de problemas - que não o vinho? Uma espécie de Eurodisney para adultos, uma montanha russa na ponta de um charro, de um risco ou de um caldo. Um espaço onde nos sentássemos e fossemos convidados a experimentar, desde que com cartão pré-pago claro, numa espécie de viagem cultural quase, tudo o que de melhor há a oferecer nas produções dos vários pontos do mundo.
Acredito que não, mas perguntou-me porquê. São fórmulas que matam e moem tal como o vinho, que continua a fazer vítimas em pleno século XXI. É a hipocrisia colectiva, social, aquela que nos faz continuar a olhar de lado e a ostracizar quem troca seringas na farmácia, e a aplaudir o homem do garrafão aos pés, ainda que na sua versão moderna de engravatado de dia, embriagado à noite, que vê justificadas as suas atitudes num copo de vinho socialmente aceite, bandeira orgulhosa de uma nação.
Eleições "livres"... » 2024-03-18 » Hélder Dias |
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