Não sou digno de ti
Opinião » 2020-05-09 » Carlos Tomé"Ao ler o Diário de Notícias e o Século nos dias seguintes é que percebi o que tinha acontecido, mas não imaginava o seu alcance."
Não foi “E depois do adeus” nem a “Grândola” que me adormeceram nessa noite, mas sim “Non son degno di te” (“Não sou digno de ti”) de Gianni Morandi, suplicada por alguém depois de dizer a frase ao telefone da rádio, o romantismo italiano adocicando-me os ouvidos, embalando-me o sono num colchão renovado com a renovação das camisas de milho. De manhã peguei na Solrac, assim crismada pelo Carlos Caralhana, um artista no arranjo das bicicletas do Alves Barbosa, e zarpei na bisga para apanhar o comboio que me haveria de levar ao Liceu Sá da Bandeira na capital do Ribatejo. Chegado à estação da CP, ajeitei as fitas nos punhos do guiador, e encostei a bicicleta a uma barrica de carvalho de um precioso tinto na taberna do Manuel da Estação onde ficou a estagiar até ao final da manhã desse dia.
A viagem decorreria sem incidentes de maior e de modo costumeiro, o Emílio e o Jacinto gozavam com o Cebola, especialista no arremesso de pedras à cabreiro, entrado no comboio em Mato de Miranda, ao qual se juntavam depois dois pescadores de enguias de Vale de Figueira, até ficar vermelho de raiva mais vermelho ainda do que o Hélder que já vinha de Caxarias sempre a assobiar para o ar e a dizer tonteiras para disfarçar.
Vinte e cinco minutos depois a viagem estava cumprida. Subir a ladeira da estação de Santarém até ao Liceu foi um ver se te avias que o comboio andava sempre atrasado, fizemos a subida tão velozmente que por pouco não era batido o recorde dos oito minutos e doze segundos que o Víctor Gomes registou a fazer o mesmo percurso mas a descer, a descer todos os santos ajudaram, claro, que ainda hoje vigora por lá como marca inultrapassável.
Foi chegar e pouco depois vir embora porque não havia aulas, e só por isso já foi um dia de festa. Só houve tempo para uma rápida jogatana de futebol em que o Manuel João Quartilho, goleganense de gema, deu mais uma lição de bem tratar a bola, e todos tentavam imitar mas ninguém lhe conseguia chegar aos calcanhares. Nesse dia o artista da bola teve mais cuidado e não partiu com uma bolada a janela do laboratório de Química do professor Licínio como havia feito há tempos. Bem, também houve tempo para uma deslocação fortuita ao Calhambeque, loja que atraía a rapaziada com toda a sorte de jogos, em que pontuavam os matraquilhos, os relvados dos bilhares e snookers, as pistas de carros e uma máquina de discos a vomitar os êxitos dos Beatles durante todo o santo dia.
Cheguei ao Café Central, ainda na manhã desse dia. À entrada, no terraço, o “El Rodrigo”, que não tinha ido trabalhar nesse dia ao António Alves, fábrica das lãs, estava de plantão com o rádio no ouvido a empanturrar-se com as notícias, disparou à queima-roupa “Então, sabes o que é que se está a passar?”. Como eu apenas lhe respondera que não sabia, só sabia que não tinha havido aulas, e nada mais queria saber, a conversa ficou por ali.
Ao ler o Diário de Notícias e o Século nos dias seguintes é que percebi o que tinha acontecido, mas não imaginava o seu alcance. Só mais tarde é que me apercebi da importância do dia, o que estava para trás, o que lhe deu origem, e o que sonhámos para a frente. Com essas descobertas, veio o deslumbramento, os sonhos pessoais e intransmissíveis, tudo o que me marcou para sempre e não se pode nem deve esquecer. Foi só a partir desse dia que começou a minha vida. É certo que nunca mais ouvi o Gianni Morandi e sempre confessei em surdina, “25 de Abril, desculpa mas no teu dia não te liguei nenhuma, não sou digno de ti!”.
Não sou digno de ti
Opinião » 2020-05-09 » Carlos ToméAo ler o Diário de Notícias e o Século nos dias seguintes é que percebi o que tinha acontecido, mas não imaginava o seu alcance.
Não foi “E depois do adeus” nem a “Grândola” que me adormeceram nessa noite, mas sim “Non son degno di te” (“Não sou digno de ti”) de Gianni Morandi, suplicada por alguém depois de dizer a frase ao telefone da rádio, o romantismo italiano adocicando-me os ouvidos, embalando-me o sono num colchão renovado com a renovação das camisas de milho. De manhã peguei na Solrac, assim crismada pelo Carlos Caralhana, um artista no arranjo das bicicletas do Alves Barbosa, e zarpei na bisga para apanhar o comboio que me haveria de levar ao Liceu Sá da Bandeira na capital do Ribatejo. Chegado à estação da CP, ajeitei as fitas nos punhos do guiador, e encostei a bicicleta a uma barrica de carvalho de um precioso tinto na taberna do Manuel da Estação onde ficou a estagiar até ao final da manhã desse dia.
A viagem decorreria sem incidentes de maior e de modo costumeiro, o Emílio e o Jacinto gozavam com o Cebola, especialista no arremesso de pedras à cabreiro, entrado no comboio em Mato de Miranda, ao qual se juntavam depois dois pescadores de enguias de Vale de Figueira, até ficar vermelho de raiva mais vermelho ainda do que o Hélder que já vinha de Caxarias sempre a assobiar para o ar e a dizer tonteiras para disfarçar.
Vinte e cinco minutos depois a viagem estava cumprida. Subir a ladeira da estação de Santarém até ao Liceu foi um ver se te avias que o comboio andava sempre atrasado, fizemos a subida tão velozmente que por pouco não era batido o recorde dos oito minutos e doze segundos que o Víctor Gomes registou a fazer o mesmo percurso mas a descer, a descer todos os santos ajudaram, claro, que ainda hoje vigora por lá como marca inultrapassável.
Foi chegar e pouco depois vir embora porque não havia aulas, e só por isso já foi um dia de festa. Só houve tempo para uma rápida jogatana de futebol em que o Manuel João Quartilho, goleganense de gema, deu mais uma lição de bem tratar a bola, e todos tentavam imitar mas ninguém lhe conseguia chegar aos calcanhares. Nesse dia o artista da bola teve mais cuidado e não partiu com uma bolada a janela do laboratório de Química do professor Licínio como havia feito há tempos. Bem, também houve tempo para uma deslocação fortuita ao Calhambeque, loja que atraía a rapaziada com toda a sorte de jogos, em que pontuavam os matraquilhos, os relvados dos bilhares e snookers, as pistas de carros e uma máquina de discos a vomitar os êxitos dos Beatles durante todo o santo dia.
Cheguei ao Café Central, ainda na manhã desse dia. À entrada, no terraço, o “El Rodrigo”, que não tinha ido trabalhar nesse dia ao António Alves, fábrica das lãs, estava de plantão com o rádio no ouvido a empanturrar-se com as notícias, disparou à queima-roupa “Então, sabes o que é que se está a passar?”. Como eu apenas lhe respondera que não sabia, só sabia que não tinha havido aulas, e nada mais queria saber, a conversa ficou por ali.
Ao ler o Diário de Notícias e o Século nos dias seguintes é que percebi o que tinha acontecido, mas não imaginava o seu alcance. Só mais tarde é que me apercebi da importância do dia, o que estava para trás, o que lhe deu origem, e o que sonhámos para a frente. Com essas descobertas, veio o deslumbramento, os sonhos pessoais e intransmissíveis, tudo o que me marcou para sempre e não se pode nem deve esquecer. Foi só a partir desse dia que começou a minha vida. É certo que nunca mais ouvi o Gianni Morandi e sempre confessei em surdina, “25 de Abril, desculpa mas no teu dia não te liguei nenhuma, não sou digno de ti!”.
Eleições "livres"... » 2024-03-18 » Hélder Dias |
Este é o meu único mundo! - antónio mário santos » 2024-03-08 » António Mário Santos Comentava João Carlos Lopes , no último Jornal Torrejano, de 16 de Fevereiro, sob o título Este Mundo e o Outro, partindo, quer do pessimismo nostálgico do Jorge Carreira Maia (Este não é o meu mundo), quer da importância da memória, em Maria Augusta Torcato, para resistir «à névoa que provoca o esquecimento e cegueira», quer «na militância política e cívica sempre empenhada», da minha autoria, num país do salve-se quem puder e do deixa andar, sempre à espera dum messias que resolva, por qualquer gesto milagreiro, a sua raiva abafada de nunca ser outra coisa que a imagem crónica de pobreza. |
Plantação intensiva: do corte à escovinha e tudo em fila aos horizontes metalificados - maria augusta torcato » 2024-03-08 » Maria Augusta Torcato Não sei se por causa das minhas origens ou simplesmente da minha natureza, há em mim algo, muito forte, que me liga a árvores, a plantas, a flores, a animais, a espaços verdes ou amarelos e amplos ou exíguos, a serras mais ou menos elevadas, de onde as neblinas se descolam e evolam pelos céus, a pedras, pequenas ou pedregulhos, espalhadas ou juntinhas e a regatos e fontes que jorram espontaneamente. |
A crise das democracias liberais - jorge carreira maia » 2024-03-08 » Jorge Carreira Maia A crise das democracias liberais, que tanto e a tantos atormenta, pode residir num conflito entre a natureza humana e o regime democrático-liberal. Num livro de 2008, Democratic Authority – a philosophical framework, o filósofo David. |
A carne e os ossos - pedro borges ferreira » 2024-03-08 » Pedro Ferreira Existe um paternalismo naqueles que desenvolvem uma compreensão do mundo extensiva que muitas vezes não lhes permite ver os outros, quiçá a si próprios, como realmente são. A opinião pública tem sido marcada por reflexões sobre a falta de memória histórica como justificação do novo mundo intolerante que está para vir, adivinho eu, devido à intenção de voto que se espera no CHEGA. |
O Flautista de Hamelin... » 2024-02-28 » Hélder Dias |
Este mundo e o outro - joão carlos lopes » 2024-02-22 Escreve Jorge Carreira Maia, nesta edição, ter a certeza de que este mundo já não é o seu e que o mundo a que chamou seu acabou. “Não sei bem qual foi a hora em que as coisas mudaram, em que a megera da História me deixou para trás”, vai ele dizendo na suas palavras sempre lúcidas e brilhantes, concluindo que “vivemos já num mundo tenebroso, onde os clowns ainda não estão no poder, mas este já espera por eles, para que a História satisfaça a sua insaciável sede de sangue e miséria”. |
2032: a redenção do Planeta - jorge cordeiro simões » 2024-02-22 » Jorge Cordeiro Simões
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Avivar a memória - antónio gomes » 2024-02-22 » António Gomes Há dias atrás, no âmbito da pré-campanha eleitoral, visitei o lugar onde passei a maior parte da minha vida (47 anos), as oficinas da CP no Entroncamento. Não que tivesse saudades, mas o espaço, o cheiro e acima de tudo a oportunidade de rever alguns companheiros que ainda por lá se encontram, que ainda lá continuam a vender a sua força de trabalho, foi uma boa recompensa. |
Eleições, para que vos quero! - antónio mário santos » 2024-02-22 Quando me aborreço, mudo de canal. Vou seguindo os debates eleitorais televisivos, mas, saturado, opto por um filme no SYFY, onde a Humanidade tenta salvar com seus heróis americanizados da Marvel o planeta Terra, em vez de gramar as notas e as opiniões dos comentadores profissionais e partidocratas que se esfalfam na crítica ou no elogio do seu candidato de estimação. |
» 2024-02-28
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» 2024-03-08
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