Franz Kafka
Opinião » 2016-12-16 » Jorge Carreira Maia"Nestes dois romances (O Processo e O Castelo), Kafka mostra a irracionalidade da própria organização do estado moderno, a irracionalidade que habita o centro da própria razão."
Quando li pela primeira vez O Processo, estava longe de ser capaz de perceber a íntima conexão entre a estranha narrativa do escritor checo e a natureza do mundo moderno, natureza essa configurada na empresa e no estado burocráticos. Aliás, não tinha sequer ouvido falar da Max Weber e da sua visão do estado moderno como uma organização burocrática. O estado como burocracia, na perspectiva weberiana, não significa um estado atolado em papéis, como acontece na visão popular do fenómeno burocrático, mas um estado organizado racionalmente tendo em vista a eficiência e a eficácia dos processos. Isto é fundamental para compreender a estranha obra de Franz Kafka.
Romances como O Processo ou O Castelo devolvem-nos uma visão sombria do aparelho de estado, seja este olhado do ponto de vista do poder judicial, como no primeiro caso, seja observado do ponto de vista do poder político, como no segundo. No lugar de uma organização racional, onde as decisões são plenamente justificadas e nessa justificação não deixam margem para duvidar da sua racionalidade, o que descobrimos é o puro arbítrio, a irracionalidade dos procedimentos e, em consequência, o esmagamento do indivíduo, sem que ele perceba muito bem porquê. Em O Processo, Joseph K., um bancário, é acusado judicialmente, vê-se envolvido num longo e mirabolante processo jurídico e é executado, sem nunca saber de que é acusado. Em O Castelo, o agrimensor K. é contratado por um conde. Depare-se, porém, com uma teia burocrática tal que vê continuamente defraudadas as suas expectativas, seja de exercer a profissão, seja de entrar no castelo.
Nestes dois romances, Kafka mostra a irracionalidade da própria organização do estado moderno, a irracionalidade que habita o centro da própria razão. O resultado da pressão da racionalidade política sobre o indivíduo deve, porém, ser procurado não no destino do bancário ou do agrimensor, mas na novela A Metamorfose, onde, certa manhã, Gregor Samsa, um caixeiro-viajante, acorda transformado numa barata gigante. A metáfora é poderosa. No mundo da modernidade, na época da racionalidade extrema e da burocracia político-económica, o destino do ser humano, do animal racional, é, estranhamente, converter-se num gigantesco insecto. O trabalho de Kafka é uma interpretação em profundidade da natureza das nossas sociedades. Uma obra a revisitar constantemente.
Franz Kafka
Opinião » 2016-12-16 » Jorge Carreira MaiaNestes dois romances (O Processo e O Castelo), Kafka mostra a irracionalidade da própria organização do estado moderno, a irracionalidade que habita o centro da própria razão.
Quando li pela primeira vez O Processo, estava longe de ser capaz de perceber a íntima conexão entre a estranha narrativa do escritor checo e a natureza do mundo moderno, natureza essa configurada na empresa e no estado burocráticos. Aliás, não tinha sequer ouvido falar da Max Weber e da sua visão do estado moderno como uma organização burocrática. O estado como burocracia, na perspectiva weberiana, não significa um estado atolado em papéis, como acontece na visão popular do fenómeno burocrático, mas um estado organizado racionalmente tendo em vista a eficiência e a eficácia dos processos. Isto é fundamental para compreender a estranha obra de Franz Kafka.
Romances como O Processo ou O Castelo devolvem-nos uma visão sombria do aparelho de estado, seja este olhado do ponto de vista do poder judicial, como no primeiro caso, seja observado do ponto de vista do poder político, como no segundo. No lugar de uma organização racional, onde as decisões são plenamente justificadas e nessa justificação não deixam margem para duvidar da sua racionalidade, o que descobrimos é o puro arbítrio, a irracionalidade dos procedimentos e, em consequência, o esmagamento do indivíduo, sem que ele perceba muito bem porquê. Em O Processo, Joseph K., um bancário, é acusado judicialmente, vê-se envolvido num longo e mirabolante processo jurídico e é executado, sem nunca saber de que é acusado. Em O Castelo, o agrimensor K. é contratado por um conde. Depare-se, porém, com uma teia burocrática tal que vê continuamente defraudadas as suas expectativas, seja de exercer a profissão, seja de entrar no castelo.
Nestes dois romances, Kafka mostra a irracionalidade da própria organização do estado moderno, a irracionalidade que habita o centro da própria razão. O resultado da pressão da racionalidade política sobre o indivíduo deve, porém, ser procurado não no destino do bancário ou do agrimensor, mas na novela A Metamorfose, onde, certa manhã, Gregor Samsa, um caixeiro-viajante, acorda transformado numa barata gigante. A metáfora é poderosa. No mundo da modernidade, na época da racionalidade extrema e da burocracia político-económica, o destino do ser humano, do animal racional, é, estranhamente, converter-se num gigantesco insecto. O trabalho de Kafka é uma interpretação em profundidade da natureza das nossas sociedades. Uma obra a revisitar constantemente.
Eleições "livres"... » 2024-03-18 » Hélder Dias |
Este é o meu único mundo! - antónio mário santos » 2024-03-08 » António Mário Santos Comentava João Carlos Lopes , no último Jornal Torrejano, de 16 de Fevereiro, sob o título Este Mundo e o Outro, partindo, quer do pessimismo nostálgico do Jorge Carreira Maia (Este não é o meu mundo), quer da importância da memória, em Maria Augusta Torcato, para resistir «à névoa que provoca o esquecimento e cegueira», quer «na militância política e cívica sempre empenhada», da minha autoria, num país do salve-se quem puder e do deixa andar, sempre à espera dum messias que resolva, por qualquer gesto milagreiro, a sua raiva abafada de nunca ser outra coisa que a imagem crónica de pobreza. |
Plantação intensiva: do corte à escovinha e tudo em fila aos horizontes metalificados - maria augusta torcato » 2024-03-08 » Maria Augusta Torcato Não sei se por causa das minhas origens ou simplesmente da minha natureza, há em mim algo, muito forte, que me liga a árvores, a plantas, a flores, a animais, a espaços verdes ou amarelos e amplos ou exíguos, a serras mais ou menos elevadas, de onde as neblinas se descolam e evolam pelos céus, a pedras, pequenas ou pedregulhos, espalhadas ou juntinhas e a regatos e fontes que jorram espontaneamente. |
A crise das democracias liberais - jorge carreira maia » 2024-03-08 » Jorge Carreira Maia A crise das democracias liberais, que tanto e a tantos atormenta, pode residir num conflito entre a natureza humana e o regime democrático-liberal. Num livro de 2008, Democratic Authority – a philosophical framework, o filósofo David. |
A carne e os ossos - pedro borges ferreira » 2024-03-08 » Pedro Ferreira Existe um paternalismo naqueles que desenvolvem uma compreensão do mundo extensiva que muitas vezes não lhes permite ver os outros, quiçá a si próprios, como realmente são. A opinião pública tem sido marcada por reflexões sobre a falta de memória histórica como justificação do novo mundo intolerante que está para vir, adivinho eu, devido à intenção de voto que se espera no CHEGA. |
O Flautista de Hamelin... » 2024-02-28 » Hélder Dias |
Este mundo e o outro - joão carlos lopes » 2024-02-22 Escreve Jorge Carreira Maia, nesta edição, ter a certeza de que este mundo já não é o seu e que o mundo a que chamou seu acabou. “Não sei bem qual foi a hora em que as coisas mudaram, em que a megera da História me deixou para trás”, vai ele dizendo na suas palavras sempre lúcidas e brilhantes, concluindo que “vivemos já num mundo tenebroso, onde os clowns ainda não estão no poder, mas este já espera por eles, para que a História satisfaça a sua insaciável sede de sangue e miséria”. |
2032: a redenção do Planeta - jorge cordeiro simões » 2024-02-22 » Jorge Cordeiro Simões
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Avivar a memória - antónio gomes » 2024-02-22 » António Gomes Há dias atrás, no âmbito da pré-campanha eleitoral, visitei o lugar onde passei a maior parte da minha vida (47 anos), as oficinas da CP no Entroncamento. Não que tivesse saudades, mas o espaço, o cheiro e acima de tudo a oportunidade de rever alguns companheiros que ainda por lá se encontram, que ainda lá continuam a vender a sua força de trabalho, foi uma boa recompensa. |
Eleições, para que vos quero! - antónio mário santos » 2024-02-22 Quando me aborreço, mudo de canal. Vou seguindo os debates eleitorais televisivos, mas, saturado, opto por um filme no SYFY, onde a Humanidade tenta salvar com seus heróis americanizados da Marvel o planeta Terra, em vez de gramar as notas e as opiniões dos comentadores profissionais e partidocratas que se esfalfam na crítica ou no elogio do seu candidato de estimação. |
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