Não há fartura que não dê em fome
Opinião » 2020-04-05 » Maria Augusta Torcato"Os silêncios e as quietudes que ansiávamos e de que estávamos tão carentes não são estes que nos deram"
Eu sei que o ditado popular é ao contrário, “não há fome que não dê em fartura”. Mas, aqui, na realidade que hoje vivemos , e dependendo da perspetiva de análise, creio que se aplica melhor o inverso. Aliás, está mesmo um mundo às avessas, não só conotativa, mas literalmente. Os tempos que se vivem são novos, mas não trazem nem a curiosidade, nem o prazer da habitual novidade. São tempos difíceis (há muito que se anunciavam), de ansiedade, insegurança , de perigos e riscos vários. E de uma incerteza sofrida. São tempos de silêncios e quietudes. Mas os silêncios e as quietudes que ansiávamos e de que estávamos tão carentes não são estes que nos deram, que chegaram de não sei de onde, de mansinho, invisíveis, inaudíveis, insípidos e inodoros e que não sabemos como enfrentar e vencer com sucesso.
Porém, voltemos ao ditado popular. Entre tantos medos e preocupações, dou comigo a pensar no que hei de fazer que seja melhor para a minha mãe. Angustia-me, permanentemente, não propriamente a minha situação, mas de alguns dos meus. Um filha na linha da frente da batalha, como tantos filhos e filhas de alguém, e uma mãe, octegenária, doente, mas muito controladinha e supervisionada, cuja autonomia e independência sempre se cultivaram. Domínio na sua casa, na qual recebia, diariamente os dois netos mais novos. Com um almoçava; com a mais pintainha brincava apenas, ao fim da tarde, com se duas crianças se divertissem e jogassem ao “faz de conta”. As rotinas eram cumpridas divinamente. Padaria ao lado, o pequeno supermercado ali pertinho de casa, na praça principal da vila, e os mercados, à quarta feira e ao sábado, locais de abastecimento das verduras, dos queijos pequeninos, das azeitonas, do pão de milho, das laranjas e de tudo que era específico da sra Maria e do sr Manuel. Tudo tinha de ser realizado e cumprido como sempre fora. E, a verdade, é que eram estas rotinas que funcionavam como pontos de encontro com os outros que, à sua semelhança, viveram ao longo dos tempos experiências de vida que os fizeram, que tornaram as pessoas no que são. A verdade é que são poucos os jovens a irem abastecer-se a estes espaços. São os mais velhos é que vão. E o respeito, a consideração e o carinho que nutrem reciprocamente vendedores e compradores são, no mínimo, extraordinários. Um verdadeiro campo de estudo das relações humanas.
E. de repente, tudo mudou.
De repente, passou-se da promoção de uma vida ativa com alguma qualidade, para uma promoção de vida resignada, confinada, resguardada, para não se pôr em risco a própria. E, como se gere, nestes espíritos mais velhos, mais experientes e mais sapientes a imposição de regras que considerávamos serem um malefício, e que o eram de facto, e agora são um benefício?
A minha mãe está farta de estar em casa. Nem o triângulo eu-mãe-meu irmão consegue resolver e aliviar esta ansiedade e este drama que vai crescendo. Nunca o estar sozinho, que antes era tão mau e se combatia, passou a ser tão bom e protetor. Como se explica? Não se explica. Não se consegue explicar. Ou até talvez se consiga. Mas não se entende!
Diz-me que está farta. Que podia ir só ali ao poupança comprar alguma coisa (porque quando nos pede as compras só pensa nas compras para aquele dia e para aquela hora). Eu digo: “Não, mãezinha, não podes. E fica aí , no cimo das escadas, eu fico aqui.”. Às vezes vou só até meio, para mostrar fotos dos netos. Mas ela está farta. Farta mesmo. Há três semanas que não sai de casa. Já me disse que não queria saber disto para nada, que há de ser o que Deus quiser. Mas sei que está preocupada com o que se vai passando pelo mundo com os velhos e com todos. Para quem é tão agarrada à vida, isso não lhe passa ao lado como o vento bravo.
Ontem, já em desespero, disse-lhe: “Tem paciência, mãezinha, eu ando doida com trabalho, com as aulas à distância (em aparte, já creio que de distância não têm nada, porque parece que nunca tive os alunos tão presentes e omnipresentes) e com tantas outras coisas, que temos mesmo de fazer!” E rematei: “E, agora, ninguém pode ficar doente e ninguém pode morrer!”. Ficou a pensar. Continuei: “Já viste que não pode, sequer, haver um funeral decente? Ninguém se pode despedir, não há ninguém no funeral, é tudo tão triste e as pessoas têm de ser cremadas?!”
Aí, explodiu: “Ai, isso é que não! Queimada!? Queimados temos andado nós a vida inteira! Era só o que faltava!”.
Fiquei sem palavras. Tens razão, mãe. Tens sempre razão! Que velhaca esta vida! Mas é a que temos. E há e haverá sempre alguém que está ou estará pior.
Não há fartura que não dê em fome
Opinião » 2020-04-05 » Maria Augusta TorcatoOs silêncios e as quietudes que ansiávamos e de que estávamos tão carentes não são estes que nos deram
Eu sei que o ditado popular é ao contrário, “não há fome que não dê em fartura”. Mas, aqui, na realidade que hoje vivemos , e dependendo da perspetiva de análise, creio que se aplica melhor o inverso. Aliás, está mesmo um mundo às avessas, não só conotativa, mas literalmente. Os tempos que se vivem são novos, mas não trazem nem a curiosidade, nem o prazer da habitual novidade. São tempos difíceis (há muito que se anunciavam), de ansiedade, insegurança , de perigos e riscos vários. E de uma incerteza sofrida. São tempos de silêncios e quietudes. Mas os silêncios e as quietudes que ansiávamos e de que estávamos tão carentes não são estes que nos deram, que chegaram de não sei de onde, de mansinho, invisíveis, inaudíveis, insípidos e inodoros e que não sabemos como enfrentar e vencer com sucesso.
Porém, voltemos ao ditado popular. Entre tantos medos e preocupações, dou comigo a pensar no que hei de fazer que seja melhor para a minha mãe. Angustia-me, permanentemente, não propriamente a minha situação, mas de alguns dos meus. Um filha na linha da frente da batalha, como tantos filhos e filhas de alguém, e uma mãe, octegenária, doente, mas muito controladinha e supervisionada, cuja autonomia e independência sempre se cultivaram. Domínio na sua casa, na qual recebia, diariamente os dois netos mais novos. Com um almoçava; com a mais pintainha brincava apenas, ao fim da tarde, com se duas crianças se divertissem e jogassem ao “faz de conta”. As rotinas eram cumpridas divinamente. Padaria ao lado, o pequeno supermercado ali pertinho de casa, na praça principal da vila, e os mercados, à quarta feira e ao sábado, locais de abastecimento das verduras, dos queijos pequeninos, das azeitonas, do pão de milho, das laranjas e de tudo que era específico da sra Maria e do sr Manuel. Tudo tinha de ser realizado e cumprido como sempre fora. E, a verdade, é que eram estas rotinas que funcionavam como pontos de encontro com os outros que, à sua semelhança, viveram ao longo dos tempos experiências de vida que os fizeram, que tornaram as pessoas no que são. A verdade é que são poucos os jovens a irem abastecer-se a estes espaços. São os mais velhos é que vão. E o respeito, a consideração e o carinho que nutrem reciprocamente vendedores e compradores são, no mínimo, extraordinários. Um verdadeiro campo de estudo das relações humanas.
E. de repente, tudo mudou.
De repente, passou-se da promoção de uma vida ativa com alguma qualidade, para uma promoção de vida resignada, confinada, resguardada, para não se pôr em risco a própria. E, como se gere, nestes espíritos mais velhos, mais experientes e mais sapientes a imposição de regras que considerávamos serem um malefício, e que o eram de facto, e agora são um benefício?
A minha mãe está farta de estar em casa. Nem o triângulo eu-mãe-meu irmão consegue resolver e aliviar esta ansiedade e este drama que vai crescendo. Nunca o estar sozinho, que antes era tão mau e se combatia, passou a ser tão bom e protetor. Como se explica? Não se explica. Não se consegue explicar. Ou até talvez se consiga. Mas não se entende!
Diz-me que está farta. Que podia ir só ali ao poupança comprar alguma coisa (porque quando nos pede as compras só pensa nas compras para aquele dia e para aquela hora). Eu digo: “Não, mãezinha, não podes. E fica aí , no cimo das escadas, eu fico aqui.”. Às vezes vou só até meio, para mostrar fotos dos netos. Mas ela está farta. Farta mesmo. Há três semanas que não sai de casa. Já me disse que não queria saber disto para nada, que há de ser o que Deus quiser. Mas sei que está preocupada com o que se vai passando pelo mundo com os velhos e com todos. Para quem é tão agarrada à vida, isso não lhe passa ao lado como o vento bravo.
Ontem, já em desespero, disse-lhe: “Tem paciência, mãezinha, eu ando doida com trabalho, com as aulas à distância (em aparte, já creio que de distância não têm nada, porque parece que nunca tive os alunos tão presentes e omnipresentes) e com tantas outras coisas, que temos mesmo de fazer!” E rematei: “E, agora, ninguém pode ficar doente e ninguém pode morrer!”. Ficou a pensar. Continuei: “Já viste que não pode, sequer, haver um funeral decente? Ninguém se pode despedir, não há ninguém no funeral, é tudo tão triste e as pessoas têm de ser cremadas?!”
Aí, explodiu: “Ai, isso é que não! Queimada!? Queimados temos andado nós a vida inteira! Era só o que faltava!”.
Fiquei sem palavras. Tens razão, mãe. Tens sempre razão! Que velhaca esta vida! Mas é a que temos. E há e haverá sempre alguém que está ou estará pior.
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