Torto e fora dos eixos
Opinião » 2018-07-28 » Jorge Carreira Maia"O mundo está fora dos eixos ou está cheio de tortos que é preciso endireitar. Alguma coisa está mal, fora do lugar e precisa de ser colocada onde deve estar, necessita de ser posta nos eixos."
Tornou-se um lugar comum aproximar duas ideias que emergiram na mesma época, mas em obras literárias diferentes. Em Hamlet, William Shakespeare fazia notar que “O mundo está fora dos eixos. Oh! Sorte maldita! … Por que nasci para colocá-lo em ordem!”. Miguel de Cervantes, em D. Quixote, escrevia, mais ou menos na mesma altura “… é o meu ofício e exercício andar pelo mundo endireitando tortos, e desfazendo agravos”. Tudo isto veio à luz logo no início do século XVII, esse momento inaugural dos tempos modernos. O que está em gestação, nesses dias, é o nascimento e a afirmação do sujeito – podemos dizer mesmo o nascimento da individualidade – e a revolução científica. Primado do indivíduo e conhecimento científico são, ainda hoje, os pilares em que assente o nosso modo de vida.
Aquilo que, visto retrospectivamente, poderia ser compreendido com um momento glorioso da humanidade ocidental talvez tenha sido compreendido, por muitos, de uma forma bastante mais obscura. O mundo está fora dos eixos ou, na versão de Cervantes, está cheio de tortos que é preciso endireitar. Alguma coisa está mal, fora do lugar e precisa de ser colocada onde deve estar, necessita de ser posta nos eixos. Em Hamlet há uma hiper-lucidez que vê, na tarefa de colocar o mundo em ordem, uma maldição. Maldita é a sorte daquele que foi destinado a pôr o mundo nos eixos. Contudo, no Quixote, a dissonância cognitiva, a persistente ilusão, permitem ver o ofício de endireitar o que está torto como uma tarefa gloriosa.
Durante os quatro séculos que entretanto se passaram, nunca o mundo deixou de ser sentido como estando fora dos eixos. Apesar das revoluções científicas, políticas e tecnológicas, apesar de um crescimento exponencial da civilização, do bem estar das populações e da esperança de vida, o mundo continua fora dos eixos e cheio de tortos que será necessário endireitar. O que as frases de Shakespeare e de Cervantes nos ensinam, porém, mata qualquer quimera. Aquele que estiver plenamente consciente de si sabe que pôr o mundo nos eixos não passa de uma maldição insuportável de carregar aos ombros. Só aos loucos lhes é permitido o logro de que têm por destino endireitar o mundo. Esta é uma lição que se adapta demasiado bem aos dias de hoje. Não faltam no mundo loucos que, sob o aplauso da multidão errante, tomam conta do poder crendo ser seu ofício endireitar o que está torto e desfazer agravos. Esta não é, por certo, a melhor receita para combater insónias. Boas férias.
Torto e fora dos eixos
Opinião » 2018-07-28 » Jorge Carreira MaiaO mundo está fora dos eixos ou está cheio de tortos que é preciso endireitar. Alguma coisa está mal, fora do lugar e precisa de ser colocada onde deve estar, necessita de ser posta nos eixos.
Tornou-se um lugar comum aproximar duas ideias que emergiram na mesma época, mas em obras literárias diferentes. Em Hamlet, William Shakespeare fazia notar que “O mundo está fora dos eixos. Oh! Sorte maldita! … Por que nasci para colocá-lo em ordem!”. Miguel de Cervantes, em D. Quixote, escrevia, mais ou menos na mesma altura “… é o meu ofício e exercício andar pelo mundo endireitando tortos, e desfazendo agravos”. Tudo isto veio à luz logo no início do século XVII, esse momento inaugural dos tempos modernos. O que está em gestação, nesses dias, é o nascimento e a afirmação do sujeito – podemos dizer mesmo o nascimento da individualidade – e a revolução científica. Primado do indivíduo e conhecimento científico são, ainda hoje, os pilares em que assente o nosso modo de vida.
Aquilo que, visto retrospectivamente, poderia ser compreendido com um momento glorioso da humanidade ocidental talvez tenha sido compreendido, por muitos, de uma forma bastante mais obscura. O mundo está fora dos eixos ou, na versão de Cervantes, está cheio de tortos que é preciso endireitar. Alguma coisa está mal, fora do lugar e precisa de ser colocada onde deve estar, necessita de ser posta nos eixos. Em Hamlet há uma hiper-lucidez que vê, na tarefa de colocar o mundo em ordem, uma maldição. Maldita é a sorte daquele que foi destinado a pôr o mundo nos eixos. Contudo, no Quixote, a dissonância cognitiva, a persistente ilusão, permitem ver o ofício de endireitar o que está torto como uma tarefa gloriosa.
Durante os quatro séculos que entretanto se passaram, nunca o mundo deixou de ser sentido como estando fora dos eixos. Apesar das revoluções científicas, políticas e tecnológicas, apesar de um crescimento exponencial da civilização, do bem estar das populações e da esperança de vida, o mundo continua fora dos eixos e cheio de tortos que será necessário endireitar. O que as frases de Shakespeare e de Cervantes nos ensinam, porém, mata qualquer quimera. Aquele que estiver plenamente consciente de si sabe que pôr o mundo nos eixos não passa de uma maldição insuportável de carregar aos ombros. Só aos loucos lhes é permitido o logro de que têm por destino endireitar o mundo. Esta é uma lição que se adapta demasiado bem aos dias de hoje. Não faltam no mundo loucos que, sob o aplauso da multidão errante, tomam conta do poder crendo ser seu ofício endireitar o que está torto e desfazer agravos. Esta não é, por certo, a melhor receita para combater insónias. Boas férias.
Eleições "livres"... » 2024-03-18 » Hélder Dias |
Este é o meu único mundo! - antónio mário santos » 2024-03-08 » António Mário Santos Comentava João Carlos Lopes , no último Jornal Torrejano, de 16 de Fevereiro, sob o título Este Mundo e o Outro, partindo, quer do pessimismo nostálgico do Jorge Carreira Maia (Este não é o meu mundo), quer da importância da memória, em Maria Augusta Torcato, para resistir «à névoa que provoca o esquecimento e cegueira», quer «na militância política e cívica sempre empenhada», da minha autoria, num país do salve-se quem puder e do deixa andar, sempre à espera dum messias que resolva, por qualquer gesto milagreiro, a sua raiva abafada de nunca ser outra coisa que a imagem crónica de pobreza. |
Plantação intensiva: do corte à escovinha e tudo em fila aos horizontes metalificados - maria augusta torcato » 2024-03-08 » Maria Augusta Torcato Não sei se por causa das minhas origens ou simplesmente da minha natureza, há em mim algo, muito forte, que me liga a árvores, a plantas, a flores, a animais, a espaços verdes ou amarelos e amplos ou exíguos, a serras mais ou menos elevadas, de onde as neblinas se descolam e evolam pelos céus, a pedras, pequenas ou pedregulhos, espalhadas ou juntinhas e a regatos e fontes que jorram espontaneamente. |
A crise das democracias liberais - jorge carreira maia » 2024-03-08 » Jorge Carreira Maia A crise das democracias liberais, que tanto e a tantos atormenta, pode residir num conflito entre a natureza humana e o regime democrático-liberal. Num livro de 2008, Democratic Authority – a philosophical framework, o filósofo David. |
A carne e os ossos - pedro borges ferreira » 2024-03-08 » Pedro Ferreira Existe um paternalismo naqueles que desenvolvem uma compreensão do mundo extensiva que muitas vezes não lhes permite ver os outros, quiçá a si próprios, como realmente são. A opinião pública tem sido marcada por reflexões sobre a falta de memória histórica como justificação do novo mundo intolerante que está para vir, adivinho eu, devido à intenção de voto que se espera no CHEGA. |
O Flautista de Hamelin... » 2024-02-28 » Hélder Dias |
Este mundo e o outro - joão carlos lopes » 2024-02-22 Escreve Jorge Carreira Maia, nesta edição, ter a certeza de que este mundo já não é o seu e que o mundo a que chamou seu acabou. “Não sei bem qual foi a hora em que as coisas mudaram, em que a megera da História me deixou para trás”, vai ele dizendo na suas palavras sempre lúcidas e brilhantes, concluindo que “vivemos já num mundo tenebroso, onde os clowns ainda não estão no poder, mas este já espera por eles, para que a História satisfaça a sua insaciável sede de sangue e miséria”. |
2032: a redenção do Planeta - jorge cordeiro simões » 2024-02-22 » Jorge Cordeiro Simões
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Avivar a memória - antónio gomes » 2024-02-22 » António Gomes Há dias atrás, no âmbito da pré-campanha eleitoral, visitei o lugar onde passei a maior parte da minha vida (47 anos), as oficinas da CP no Entroncamento. Não que tivesse saudades, mas o espaço, o cheiro e acima de tudo a oportunidade de rever alguns companheiros que ainda por lá se encontram, que ainda lá continuam a vender a sua força de trabalho, foi uma boa recompensa. |
Eleições, para que vos quero! - antónio mário santos » 2024-02-22 Quando me aborreço, mudo de canal. Vou seguindo os debates eleitorais televisivos, mas, saturado, opto por um filme no SYFY, onde a Humanidade tenta salvar com seus heróis americanizados da Marvel o planeta Terra, em vez de gramar as notas e as opiniões dos comentadores profissionais e partidocratas que se esfalfam na crítica ou no elogio do seu candidato de estimação. |
» 2024-02-28
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