Afinal até poderia ser um Deus, passeando pela brisa da tarde - josé mota pereira
Opinião » 2020-06-07 » José Mota Pereira"Até quando não vemos, não queremos ver, as vidas da outra gente? "
No final quente da tarde de sábado, soltou-se repentinamente da janela do prédio em frente o embalo harmónico de uma secreta concertina.
As Pombinhas da Catrina rasgam o silêncio daqueles poucos, que vão passando pela rua, de rostos devidamente cobertos pela máscara sanitária.
Deste lado, assobia-se com as Pombinhas.
A tarde cai assim lenta, enquanto na tv ligada na sala as notícias nos vão chegando pelos telejornais - ainda se chamam assim?
Diz-me o noticiário que a polícia cerca um dos bairros dos subúrbios de Lisboa onde o vírus se terá libertado sem regras.
Mas que regras?
Não há regras no contrato trabalho para as obras. aliás não há sequer contrato. Não há regras na empresa de trabalho temporário. Fazes oito horas hoje ali, amanhã talvez não, depois de amanhã talvez quatro horas acolá. Com sorte, talvez arranjes 700 paus no fim do mês.
Não há regras na vida de quem vive(?) na margem da cidade onde há gente que é gente mas a quem dizem que tem de cumprir as regras de uma sociedade que os cospe para a borda do prato.
Está a dar na TV: no ghetto soldam-se as portas dos cafés com a vigilância da polícia de choque.
Tudo em nome da nossa tranquilidade sanitária em que também lavamos as nossas consciências, blindamos as nossas consciências.
Até quando não vemos, não queremos ver, as vidas da outra gente? Os outros. Aqueles de quem estamos sempre dispostos a dizer palavras bonitas como a solidariedade, que somos todos iguais, mas de quem afinal não queremos saber, não queremos ver, ouvir, nem ler.
Torna-se evidente, conforme evolui a pandemia, que as principais vítimas estão nos lares dos velhos (muito deles ilegais mas que são a única resposta para muitas famílias face à ausência de uma resposta pública decente ao longo dos anos), nas fábricas e armazéns dos grandes grupos económicos, situadas nos subúrbios onde o transporte público é feito nas condições que se tem visto, nos bairros sociais das margens das cidades.
Se ao princípio o vírus apanhou desprevenidos milionários de férias nas estâncias de sky, percebe-se hoje que está longe de ser multiclassista. O vírus tem classe, sim!
Eis em todo o esplendor, o progresso de sociedade que nos venderam.
Desligo a TV. Da rua, ainda vem o som do acordeão. O acordeonista incógnito, escondido atrás do cortinado cinza, poderia ser apenas um Deus passeando pela brisa da tarde - e o Mário de Carvalho que me desculpe o roubo da expressão que titula um dos seus romances.
Mas é apenas um humano e é nessa singeleza que engrandece a tarde de sábado.
Temos ainda a música, as palavras, a pintura e a dança, por isso persistimos no projecto de sermos humanos, numa sociedade que respeite os outros e o chão que pisamos.
Afinal até poderia ser um Deus, passeando pela brisa da tarde - josé mota pereira
Opinião » 2020-06-07 » José Mota PereiraAté quando não vemos, não queremos ver, as vidas da outra gente?
No final quente da tarde de sábado, soltou-se repentinamente da janela do prédio em frente o embalo harmónico de uma secreta concertina.
As Pombinhas da Catrina rasgam o silêncio daqueles poucos, que vão passando pela rua, de rostos devidamente cobertos pela máscara sanitária.
Deste lado, assobia-se com as Pombinhas.
A tarde cai assim lenta, enquanto na tv ligada na sala as notícias nos vão chegando pelos telejornais - ainda se chamam assim?
Diz-me o noticiário que a polícia cerca um dos bairros dos subúrbios de Lisboa onde o vírus se terá libertado sem regras.
Mas que regras?
Não há regras no contrato trabalho para as obras. aliás não há sequer contrato. Não há regras na empresa de trabalho temporário. Fazes oito horas hoje ali, amanhã talvez não, depois de amanhã talvez quatro horas acolá. Com sorte, talvez arranjes 700 paus no fim do mês.
Não há regras na vida de quem vive(?) na margem da cidade onde há gente que é gente mas a quem dizem que tem de cumprir as regras de uma sociedade que os cospe para a borda do prato.
Está a dar na TV: no ghetto soldam-se as portas dos cafés com a vigilância da polícia de choque.
Tudo em nome da nossa tranquilidade sanitária em que também lavamos as nossas consciências, blindamos as nossas consciências.
Até quando não vemos, não queremos ver, as vidas da outra gente? Os outros. Aqueles de quem estamos sempre dispostos a dizer palavras bonitas como a solidariedade, que somos todos iguais, mas de quem afinal não queremos saber, não queremos ver, ouvir, nem ler.
Torna-se evidente, conforme evolui a pandemia, que as principais vítimas estão nos lares dos velhos (muito deles ilegais mas que são a única resposta para muitas famílias face à ausência de uma resposta pública decente ao longo dos anos), nas fábricas e armazéns dos grandes grupos económicos, situadas nos subúrbios onde o transporte público é feito nas condições que se tem visto, nos bairros sociais das margens das cidades.
Se ao princípio o vírus apanhou desprevenidos milionários de férias nas estâncias de sky, percebe-se hoje que está longe de ser multiclassista. O vírus tem classe, sim!
Eis em todo o esplendor, o progresso de sociedade que nos venderam.
Desligo a TV. Da rua, ainda vem o som do acordeão. O acordeonista incógnito, escondido atrás do cortinado cinza, poderia ser apenas um Deus passeando pela brisa da tarde - e o Mário de Carvalho que me desculpe o roubo da expressão que titula um dos seus romances.
Mas é apenas um humano e é nessa singeleza que engrandece a tarde de sábado.
Temos ainda a música, as palavras, a pintura e a dança, por isso persistimos no projecto de sermos humanos, numa sociedade que respeite os outros e o chão que pisamos.
Eleições "livres"... » 2024-03-18 » Hélder Dias |
Este é o meu único mundo! - antónio mário santos » 2024-03-08 » António Mário Santos Comentava João Carlos Lopes , no último Jornal Torrejano, de 16 de Fevereiro, sob o título Este Mundo e o Outro, partindo, quer do pessimismo nostálgico do Jorge Carreira Maia (Este não é o meu mundo), quer da importância da memória, em Maria Augusta Torcato, para resistir «à névoa que provoca o esquecimento e cegueira», quer «na militância política e cívica sempre empenhada», da minha autoria, num país do salve-se quem puder e do deixa andar, sempre à espera dum messias que resolva, por qualquer gesto milagreiro, a sua raiva abafada de nunca ser outra coisa que a imagem crónica de pobreza. |
Plantação intensiva: do corte à escovinha e tudo em fila aos horizontes metalificados - maria augusta torcato » 2024-03-08 » Maria Augusta Torcato Não sei se por causa das minhas origens ou simplesmente da minha natureza, há em mim algo, muito forte, que me liga a árvores, a plantas, a flores, a animais, a espaços verdes ou amarelos e amplos ou exíguos, a serras mais ou menos elevadas, de onde as neblinas se descolam e evolam pelos céus, a pedras, pequenas ou pedregulhos, espalhadas ou juntinhas e a regatos e fontes que jorram espontaneamente. |
A crise das democracias liberais - jorge carreira maia » 2024-03-08 » Jorge Carreira Maia A crise das democracias liberais, que tanto e a tantos atormenta, pode residir num conflito entre a natureza humana e o regime democrático-liberal. Num livro de 2008, Democratic Authority – a philosophical framework, o filósofo David. |
A carne e os ossos - pedro borges ferreira » 2024-03-08 » Pedro Ferreira Existe um paternalismo naqueles que desenvolvem uma compreensão do mundo extensiva que muitas vezes não lhes permite ver os outros, quiçá a si próprios, como realmente são. A opinião pública tem sido marcada por reflexões sobre a falta de memória histórica como justificação do novo mundo intolerante que está para vir, adivinho eu, devido à intenção de voto que se espera no CHEGA. |
O Flautista de Hamelin... » 2024-02-28 » Hélder Dias |
Este mundo e o outro - joão carlos lopes » 2024-02-22 Escreve Jorge Carreira Maia, nesta edição, ter a certeza de que este mundo já não é o seu e que o mundo a que chamou seu acabou. “Não sei bem qual foi a hora em que as coisas mudaram, em que a megera da História me deixou para trás”, vai ele dizendo na suas palavras sempre lúcidas e brilhantes, concluindo que “vivemos já num mundo tenebroso, onde os clowns ainda não estão no poder, mas este já espera por eles, para que a História satisfaça a sua insaciável sede de sangue e miséria”. |
2032: a redenção do Planeta - jorge cordeiro simões » 2024-02-22 » Jorge Cordeiro Simões
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Avivar a memória - antónio gomes » 2024-02-22 » António Gomes Há dias atrás, no âmbito da pré-campanha eleitoral, visitei o lugar onde passei a maior parte da minha vida (47 anos), as oficinas da CP no Entroncamento. Não que tivesse saudades, mas o espaço, o cheiro e acima de tudo a oportunidade de rever alguns companheiros que ainda por lá se encontram, que ainda lá continuam a vender a sua força de trabalho, foi uma boa recompensa. |
Eleições, para que vos quero! - antónio mário santos » 2024-02-22 Quando me aborreço, mudo de canal. Vou seguindo os debates eleitorais televisivos, mas, saturado, opto por um filme no SYFY, onde a Humanidade tenta salvar com seus heróis americanizados da Marvel o planeta Terra, em vez de gramar as notas e as opiniões dos comentadores profissionais e partidocratas que se esfalfam na crítica ou no elogio do seu candidato de estimação. |
» 2024-02-28
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