Desesperança 1, ou o Novembro do nosso descontentamento - maria augusta torcato
Opinião » 2021-11-25 » Maria Augusta Torcato"Custa-me muito que os políticos do meu país andem em desnorte completo. Que passem essa imagem e nos alimentem uma vergonha alheia e uma angústia sem fim."
Às vezes, lembro-me das personagens de Sancho Pança e D. Quixote, evocadas no capítulo III de “Viagens na minha terra”, de Garrett.
Não sei, todavia, se a lembrança dessas personagens, neste contexto, vem por boas razões.
À medida que os dias decorrem, um de cada vez, mas sem qualquer interrupção, assiste-se a um triste, diria mesmo tristíssimo, espectáculo, dado pelos políticos do meu país. O espectáculo não é inédito, pois já está em palco há muito, talvez desde sempre, mas agora mais e maior, desde que o orçamento de 2022 se tornou em contas de dividir erradas para quase todos.
Há muito que deixei de me identificar com a política, esta política, não obstante todos reconhecermos a nobreza “do que é a política” e até se tratar de um acto político o simples facto de eu estar a discorrer sobre isso e a partilhá-lo publicamente.
Parece que sempre fomos, somos e seremos um país em crise. Aliás, o facto de podermos vir a não estar ou ser um país em crise, em si mesmo, parece ser uma odisseia ou uma tarefa épica para os nossos políticos, que, para a enfrentarem, teriam de ter espírito heroico, característica que lhes é ausente. É mais fácil fazerem a sua política com um país em crise, com o aceno do medo, com o domínio e não a partilha, com a prepotência e a soberba e não com a colaboração ou solidariedade. O medo e a pobreza subjugam essencialmente o espírito, a alma. E quando a alma está aprisionada tudo é possível. Até viver-se uma não vida.
Custa-me muito que os políticos do meu país andem em desnorte completo. Que passem essa imagem e nos alimentem uma vergonha alheia e uma angústia sem fim. Há os que conseguem gerar a confusão e, de mansinho, saem do campo como se nunca lá tivessem estado e se riem, às escondidas, das bulhas e desnorte dos outros; há os que se deixaram, ingénua ou distraidamente, envolver na confusão e, fizessem o que fizessem, sairiam sempre mal, a perder, com aquela sensação de “independentemente do que façamos, caminhamos inevitavelmente para a morte”; há os que resolveram optar pelo fratricídio, já que há muito os interesses individuais se sobrepuseram aos interesses colectivos, mesmo que se justifiquem os primeiros com os segundos; há os que aproveitam o momento e, à semelhança dos roncadores, afirmam-se e crescem. Para estes, e talvez para outros, quanto maior a confusão melhor. Quanto maior a crise, melhor. Quanto mais acentuado o medo, melhor. Quanto mais pobreza, melhor. É que assim, os ditos salvadores da pátria poderão sempre cobrar ao povo a sua entrega e o seu sacrifício para o salvarem, poderão sempre disfarçar a sua incompetência e ambição desmesurada, praticando a retórica e uma misericordiazinha, uma política assistencialista que nunca assiste quem devia, e podem continuar a (des)governar sem que haja um verdadeiro escrutínio do que fazem e não fazem. Nesta teia, porque até o xadrez já está indefinido, há os estrategas, os espertos, os ingénuos, os tolos e os palermas e ainda muitas outras espécies. O pior é que foram todos, todinhos, apanhados na teia. E a teia está sobre todos nós. Não temos escapatória.
Para fugir a esta triste realidade, a esta desesperança quanto ao presente e ao futuro, nada melhor do que enfiar-me na leitura. Porém, não consigo mesmo fugir. A leitura lá me leva para a realidade, mesmo que esta se apresente como uma alegoria. O Pessoa era um espectáculo, tinha toda a razão: seria bom ser inconsciente…
Retomo Garrett, o tal que também se contradisse e acabou visconde, “Honra e proveito não cabem num saco, beleza e mentira também lá não cabem”. Mesmo com sacos mais modernos, o problema continua o mesmo e aplica-se a todas as áreas da nossa sociedade e não apenas ao potencial desfasamento entre literatura e realidade. Na minha perspetiva, a literatura é, talvez, a única que consegue pôr beleza e verdade num saco e pode, noutro, pôr beleza e mentira, para que o leitor consiga, com olhar acutilante e crítico, descobrir a diferença.
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Desesperança 1, ou o Novembro do nosso descontentamento - maria augusta torcato
Opinião » 2021-11-25 » Maria Augusta TorcatoCusta-me muito que os políticos do meu país andem em desnorte completo. Que passem essa imagem e nos alimentem uma vergonha alheia e uma angústia sem fim.
Às vezes, lembro-me das personagens de Sancho Pança e D. Quixote, evocadas no capítulo III de “Viagens na minha terra”, de Garrett.
Não sei, todavia, se a lembrança dessas personagens, neste contexto, vem por boas razões.
À medida que os dias decorrem, um de cada vez, mas sem qualquer interrupção, assiste-se a um triste, diria mesmo tristíssimo, espectáculo, dado pelos políticos do meu país. O espectáculo não é inédito, pois já está em palco há muito, talvez desde sempre, mas agora mais e maior, desde que o orçamento de 2022 se tornou em contas de dividir erradas para quase todos.
Há muito que deixei de me identificar com a política, esta política, não obstante todos reconhecermos a nobreza “do que é a política” e até se tratar de um acto político o simples facto de eu estar a discorrer sobre isso e a partilhá-lo publicamente.
Parece que sempre fomos, somos e seremos um país em crise. Aliás, o facto de podermos vir a não estar ou ser um país em crise, em si mesmo, parece ser uma odisseia ou uma tarefa épica para os nossos políticos, que, para a enfrentarem, teriam de ter espírito heroico, característica que lhes é ausente. É mais fácil fazerem a sua política com um país em crise, com o aceno do medo, com o domínio e não a partilha, com a prepotência e a soberba e não com a colaboração ou solidariedade. O medo e a pobreza subjugam essencialmente o espírito, a alma. E quando a alma está aprisionada tudo é possível. Até viver-se uma não vida.
Custa-me muito que os políticos do meu país andem em desnorte completo. Que passem essa imagem e nos alimentem uma vergonha alheia e uma angústia sem fim. Há os que conseguem gerar a confusão e, de mansinho, saem do campo como se nunca lá tivessem estado e se riem, às escondidas, das bulhas e desnorte dos outros; há os que se deixaram, ingénua ou distraidamente, envolver na confusão e, fizessem o que fizessem, sairiam sempre mal, a perder, com aquela sensação de “independentemente do que façamos, caminhamos inevitavelmente para a morte”; há os que resolveram optar pelo fratricídio, já que há muito os interesses individuais se sobrepuseram aos interesses colectivos, mesmo que se justifiquem os primeiros com os segundos; há os que aproveitam o momento e, à semelhança dos roncadores, afirmam-se e crescem. Para estes, e talvez para outros, quanto maior a confusão melhor. Quanto maior a crise, melhor. Quanto mais acentuado o medo, melhor. Quanto mais pobreza, melhor. É que assim, os ditos salvadores da pátria poderão sempre cobrar ao povo a sua entrega e o seu sacrifício para o salvarem, poderão sempre disfarçar a sua incompetência e ambição desmesurada, praticando a retórica e uma misericordiazinha, uma política assistencialista que nunca assiste quem devia, e podem continuar a (des)governar sem que haja um verdadeiro escrutínio do que fazem e não fazem. Nesta teia, porque até o xadrez já está indefinido, há os estrategas, os espertos, os ingénuos, os tolos e os palermas e ainda muitas outras espécies. O pior é que foram todos, todinhos, apanhados na teia. E a teia está sobre todos nós. Não temos escapatória.
Para fugir a esta triste realidade, a esta desesperança quanto ao presente e ao futuro, nada melhor do que enfiar-me na leitura. Porém, não consigo mesmo fugir. A leitura lá me leva para a realidade, mesmo que esta se apresente como uma alegoria. O Pessoa era um espectáculo, tinha toda a razão: seria bom ser inconsciente…
Retomo Garrett, o tal que também se contradisse e acabou visconde, “Honra e proveito não cabem num saco, beleza e mentira também lá não cabem”. Mesmo com sacos mais modernos, o problema continua o mesmo e aplica-se a todas as áreas da nossa sociedade e não apenas ao potencial desfasamento entre literatura e realidade. Na minha perspetiva, a literatura é, talvez, a única que consegue pôr beleza e verdade num saco e pode, noutro, pôr beleza e mentira, para que o leitor consiga, com olhar acutilante e crítico, descobrir a diferença.
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Eleições "livres"... » 2024-03-18 » Hélder Dias |
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