Na lembrança de uma desagradável coincidência - josé alves pereira
Opinião » 2020-06-07 » José Alves Pereira
Estávamos em Abril, no já longínquo ano de 1972. Tinha terminado, em 31 de Março, os trinta e nove meses de serviço militar e regressara à profissão de desenhador na Metalúrgica Nery. Nessa altura, passei a integrar a organização local de Torres Novas do PCP, juntamente com outros dois camaradas: o Rui Pereira e o Carlos Sousa Pereira.
Como estávamos em vésperas do 1.º de Maio, impunha-se assinalar a data com uma acção de agitação política. Após reunião, com o responsável X, clandestino, combinou-se o dia e repartiram-se os panfletos. Diferentemente de acções anteriores, esta era explicitamente identificada com o PCP, o que não acontecia desde a vaga de prisões nos anos 60. Na divisão geográfica, calhou-me a zona das oficinas, na parte baixa da então vila de Torres Novas.
No dia aprazado, cerca de uma semana antes do 1.º de Maio, pelas 9 horas da noite, saí de casa com o maço de panfletos, devidamente embrulhado, e fiz as voltas do costume: café “Oásis”, dois dedos de conversa no Cine-Clube e sei lá que mais para passar o tempo no modo mais natural possível. Por vezes, fazia-me lembrar, embora por melhores razões, o síndrome de Raskolnikov no célebre romance “Crime e Castigo”, de Dostoievski: o embrulho era dez vezes maior, parecendo atrair os olhares.
Enfim, aproximava-se a meia-noite, hora combinada para o início da acção, a pé. Havia que tomar algum cuidado porque demasiado cedo corria-se o risco de ainda haver pessoas na rua, e demasiado tarde por sermos vistos isoladamente. Por aqui e por ali lá fui deitando os panfletos, impressos no conhecido “papel bíblia”. Neles, apelava-se à comemoração do 1.º de Maio, sob palavras de ordem do aumento dos salários, de protesto pelo custo de vida, exigindo o fim da guerra colonial, pelo direito de reunião, associação e livre expressão do pensamento e outras consignas que faziam parte da resistência ao fascismo e que o 25 de Abril, dois anos depois, viria a consagrar.
Um dos locais da distribuição foi o jardim da avenida, por detrás do pequeno bar do conhecido João Virolas, que nesse tempo era apenas uma pequena construção de alvenaria e, naquilo que é hoje o espaço envidraçado, somente uma cobertura de lona. Àquela hora, a esplanada estava fechada e com as luzes apagadas. Como as folhas de “papel bíblia” eram muito finas, tinham tendência a colar-se. Fiz um rolo com algumas e arremessei-as, oblíquamente, contra a parede, de modo a espalharem-se mais facilmente, provocando um ruído que me pareceu enorme.
Quando ultrapasso o edifício deparo-me com um vulto a meia dúzia de metros, na escuridão, debaixo da cobertura. Apenas reparei que tinha na cabeça um boné com pala, como os usados pela PSP. O coração, que já iria a cem, deve ter saltado para duzentos. Tive nessa altura, apesar de tudo, o sangue frio de não correr, continuando a andar normalmente, mas olhando pelo canto do olho e ver o que se seguiria.
Voltei para casa, numa noite mal dormida, com a inquietação de ter sido identificado. Soube, depois do 25 de Abril, que tal aconteceu. O vulto que vislumbrei era o operador das bombas de gasolina da STAL (edifício na rotunda, derrubado há anos), daí o chapéu de pala. Creio que a sua presença ali não seria alheia aos assaltos a bombas de gasolina que se começavam a verificar. Do que viu guardou silêncio, o que agradeci.
No dia seguinte, entre dentes, não se falava noutra coisa, ou a mim me parecia. Fervilhavam os boatos e as explicações do onde, quando, por quem, como, mas sempre havia qualquer coisa que não batia certo. Os outros camaradas, por outros pontos, haviam também feito a sua parte. A polícia vasculhava alguns caixotes do lixo, suspeitos de conterem os stenceis usados na impressão dos documentos. No íntimo, um misto de gozo, discrição e muita expectativa.
Podia terminar aqui a história, afinal igual a tantas outras, por outros lados e protagonistas, não fora uma desagradável coincidência ocorrida nessa tarde. Estava no meu estirador de desenho quando sou chamado ao telefone para falar com o sr. João Duarte, do serviço de pessoal. Este situava-se junto à estrada, onde havia um pequeno parque de cargas e descargas e estacionavam viaturas do exterior. A sala de desenho era lá atrás no edifício mais antigo. Enquanto me dirigia para o telefone terei pensado: “Caramba, não perderam tempo!” Do outro lado da linha, pergunta-me o sr. João Duarte: “Como saiu há pouco tempo do serviço militar e retomou este mês o trabalho, como quer receber o vencimento, por cheque ou transferência bancária?” Não lembro o que respondi.
Verdadeiramente, o que queria nesse momento era sentar-me e beber um copo de água.
Na lembrança de uma desagradável coincidência - josé alves pereira
Opinião » 2020-06-07 » José Alves PereiraEstávamos em Abril, no já longínquo ano de 1972. Tinha terminado, em 31 de Março, os trinta e nove meses de serviço militar e regressara à profissão de desenhador na Metalúrgica Nery. Nessa altura, passei a integrar a organização local de Torres Novas do PCP, juntamente com outros dois camaradas: o Rui Pereira e o Carlos Sousa Pereira.
Como estávamos em vésperas do 1.º de Maio, impunha-se assinalar a data com uma acção de agitação política. Após reunião, com o responsável X, clandestino, combinou-se o dia e repartiram-se os panfletos. Diferentemente de acções anteriores, esta era explicitamente identificada com o PCP, o que não acontecia desde a vaga de prisões nos anos 60. Na divisão geográfica, calhou-me a zona das oficinas, na parte baixa da então vila de Torres Novas.
No dia aprazado, cerca de uma semana antes do 1.º de Maio, pelas 9 horas da noite, saí de casa com o maço de panfletos, devidamente embrulhado, e fiz as voltas do costume: café “Oásis”, dois dedos de conversa no Cine-Clube e sei lá que mais para passar o tempo no modo mais natural possível. Por vezes, fazia-me lembrar, embora por melhores razões, o síndrome de Raskolnikov no célebre romance “Crime e Castigo”, de Dostoievski: o embrulho era dez vezes maior, parecendo atrair os olhares.
Enfim, aproximava-se a meia-noite, hora combinada para o início da acção, a pé. Havia que tomar algum cuidado porque demasiado cedo corria-se o risco de ainda haver pessoas na rua, e demasiado tarde por sermos vistos isoladamente. Por aqui e por ali lá fui deitando os panfletos, impressos no conhecido “papel bíblia”. Neles, apelava-se à comemoração do 1.º de Maio, sob palavras de ordem do aumento dos salários, de protesto pelo custo de vida, exigindo o fim da guerra colonial, pelo direito de reunião, associação e livre expressão do pensamento e outras consignas que faziam parte da resistência ao fascismo e que o 25 de Abril, dois anos depois, viria a consagrar.
Um dos locais da distribuição foi o jardim da avenida, por detrás do pequeno bar do conhecido João Virolas, que nesse tempo era apenas uma pequena construção de alvenaria e, naquilo que é hoje o espaço envidraçado, somente uma cobertura de lona. Àquela hora, a esplanada estava fechada e com as luzes apagadas. Como as folhas de “papel bíblia” eram muito finas, tinham tendência a colar-se. Fiz um rolo com algumas e arremessei-as, oblíquamente, contra a parede, de modo a espalharem-se mais facilmente, provocando um ruído que me pareceu enorme.
Quando ultrapasso o edifício deparo-me com um vulto a meia dúzia de metros, na escuridão, debaixo da cobertura. Apenas reparei que tinha na cabeça um boné com pala, como os usados pela PSP. O coração, que já iria a cem, deve ter saltado para duzentos. Tive nessa altura, apesar de tudo, o sangue frio de não correr, continuando a andar normalmente, mas olhando pelo canto do olho e ver o que se seguiria.
Voltei para casa, numa noite mal dormida, com a inquietação de ter sido identificado. Soube, depois do 25 de Abril, que tal aconteceu. O vulto que vislumbrei era o operador das bombas de gasolina da STAL (edifício na rotunda, derrubado há anos), daí o chapéu de pala. Creio que a sua presença ali não seria alheia aos assaltos a bombas de gasolina que se começavam a verificar. Do que viu guardou silêncio, o que agradeci.
No dia seguinte, entre dentes, não se falava noutra coisa, ou a mim me parecia. Fervilhavam os boatos e as explicações do onde, quando, por quem, como, mas sempre havia qualquer coisa que não batia certo. Os outros camaradas, por outros pontos, haviam também feito a sua parte. A polícia vasculhava alguns caixotes do lixo, suspeitos de conterem os stenceis usados na impressão dos documentos. No íntimo, um misto de gozo, discrição e muita expectativa.
Podia terminar aqui a história, afinal igual a tantas outras, por outros lados e protagonistas, não fora uma desagradável coincidência ocorrida nessa tarde. Estava no meu estirador de desenho quando sou chamado ao telefone para falar com o sr. João Duarte, do serviço de pessoal. Este situava-se junto à estrada, onde havia um pequeno parque de cargas e descargas e estacionavam viaturas do exterior. A sala de desenho era lá atrás no edifício mais antigo. Enquanto me dirigia para o telefone terei pensado: “Caramba, não perderam tempo!” Do outro lado da linha, pergunta-me o sr. João Duarte: “Como saiu há pouco tempo do serviço militar e retomou este mês o trabalho, como quer receber o vencimento, por cheque ou transferência bancária?” Não lembro o que respondi.
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As eleições e o triunfo do pensamento mágico - jorge carreira maia » 2024-04-10 » Jorge Carreira Maia Existe, em Portugal, uma franja pequena do eleitorado que quer, deliberadamente, destruir a democracia, não suporta os regimes liberais, sonha com o retorno ao autoritarismo. Ao votar Chega, fá-lo racionalmente. Contudo, a explosão do eleitorado do partido de André Ventura não se explica por esse tipo de eleitores. |
Eleições "livres"... » 2024-03-18 » Hélder Dias |
Este é o meu único mundo! - antónio mário santos » 2024-03-08 » António Mário Santos Comentava João Carlos Lopes , no último Jornal Torrejano, de 16 de Fevereiro, sob o título Este Mundo e o Outro, partindo, quer do pessimismo nostálgico do Jorge Carreira Maia (Este não é o meu mundo), quer da importância da memória, em Maria Augusta Torcato, para resistir «à névoa que provoca o esquecimento e cegueira», quer «na militância política e cívica sempre empenhada», da minha autoria, num país do salve-se quem puder e do deixa andar, sempre à espera dum messias que resolva, por qualquer gesto milagreiro, a sua raiva abafada de nunca ser outra coisa que a imagem crónica de pobreza. |
Plantação intensiva: do corte à escovinha e tudo em fila aos horizontes metalificados - maria augusta torcato » 2024-03-08 » Maria Augusta Torcato Não sei se por causa das minhas origens ou simplesmente da minha natureza, há em mim algo, muito forte, que me liga a árvores, a plantas, a flores, a animais, a espaços verdes ou amarelos e amplos ou exíguos, a serras mais ou menos elevadas, de onde as neblinas se descolam e evolam pelos céus, a pedras, pequenas ou pedregulhos, espalhadas ou juntinhas e a regatos e fontes que jorram espontaneamente. |
A crise das democracias liberais - jorge carreira maia » 2024-03-08 » Jorge Carreira Maia A crise das democracias liberais, que tanto e a tantos atormenta, pode residir num conflito entre a natureza humana e o regime democrático-liberal. Num livro de 2008, Democratic Authority – a philosophical framework, o filósofo David. |
A carne e os ossos - pedro borges ferreira » 2024-03-08 » Pedro Ferreira Existe um paternalismo naqueles que desenvolvem uma compreensão do mundo extensiva que muitas vezes não lhes permite ver os outros, quiçá a si próprios, como realmente são. A opinião pública tem sido marcada por reflexões sobre a falta de memória histórica como justificação do novo mundo intolerante que está para vir, adivinho eu, devido à intenção de voto que se espera no CHEGA. |
O Flautista de Hamelin... » 2024-02-28 » Hélder Dias |
Este mundo e o outro - joão carlos lopes » 2024-02-22 Escreve Jorge Carreira Maia, nesta edição, ter a certeza de que este mundo já não é o seu e que o mundo a que chamou seu acabou. “Não sei bem qual foi a hora em que as coisas mudaram, em que a megera da História me deixou para trás”, vai ele dizendo na suas palavras sempre lúcidas e brilhantes, concluindo que “vivemos já num mundo tenebroso, onde os clowns ainda não estão no poder, mas este já espera por eles, para que a História satisfaça a sua insaciável sede de sangue e miséria”. |
2032: a redenção do Planeta - jorge cordeiro simões » 2024-02-22 » Jorge Cordeiro Simões
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Avivar a memória - antónio gomes » 2024-02-22 » António Gomes Há dias atrás, no âmbito da pré-campanha eleitoral, visitei o lugar onde passei a maior parte da minha vida (47 anos), as oficinas da CP no Entroncamento. Não que tivesse saudades, mas o espaço, o cheiro e acima de tudo a oportunidade de rever alguns companheiros que ainda por lá se encontram, que ainda lá continuam a vender a sua força de trabalho, foi uma boa recompensa. |
» 2024-04-10
» Jorge Carreira Maia
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