Um árduo caminho
Opinião » 2016-08-18 » Jorge Carreira Maia"O caso dos burkinis é interessante porque torna a posição das autoridades francesas muito frágil, se se tiver um conta os próprios padrões ocidentais..."
A proibição do uso de burkinis em algumas praias francesas, bem como o apoio que o primei-ministro Manuel Valls tem dado às decisões dos presidentes de câmara, torna evidente que a Europa – a França em particular – está perante um problema de enorme complexidade. Esta complexidade deriva de um choque entre duas visões culturais sobre o que é o comportamento adequado na vida social. O choque, todavia, não fica por aí, pois a situação leva a um conflito no interior dos próprios valores ocidentais. O caso dos burkinis é interessante porque torna a posição das autoridades francesas muito frágil, se se tiver um conta os próprios padrões ocidentais, e mostra bem que estamos numa situação onde não há soluções pré-fabricadas e prontas a aplicar.
Vale a pena ler a argumentação transcrita de Valls para perceber que ela omite duas questões essenciais. A primeira diz respeito ao facto de poderem existir mulheres que, sem qualquer coacção externa, queiram adoptar, por um acto livre, esse tipo de vestuário. Em segundo lugar, o uso do burkini não significa que as usuárias estejam a infringir o secularismo do Estado. Um Estado secular não implica que as pessoas não possuam crenças religiosas e que, em sociedade, se comportem em conformidade com as suas crenças, desde que essas pessoas não interfiram na liberdade das outras.
A França perante o problema posto pela presença do Islão poderia lidar com ele de dois pontos de vista. Valorizar a liberdade negativa. Cada um vive como entende, desde que não infrinja a liberdade de terceiros. Isto significaria valorizar o indivíduo e os seus direitos e liberdades. Significaria ainda que o Estado deveria punir todos os actos que atentassem contra essa liberdade negativa, incluindo aqueles que se passam nas comunidades e famílias muçulmanas. Isso exigiria pôr de lado o multiculturalismo e, acima de tudo, um longo e exaustivo trabalho policial, talvez impossível de realizar.
A França optou por manter-se fiel à sua tradição. Evoca a virtude republicana: o uso do burkini como da burka “não é compatível com os valores da França e da República”. E acrescenta Valls que “a República deve defender-se”. O problema é que as autoridades francesas agem segundo o princípio da suspeita. Suspeitam, como o diz a ministra para os direitos das mulheres, que se pretende “esconder os corpos das mulheres para que possam ser controlados”. Esta é a velha tradição que vem da época do Terror, da Revolução Francesa. Perante a suspeita da falta de virtude republicana, os jacobinos entretinham-se a decapitar pessoas. Hoje a França é civilizada, não usa a guilhotina, mas o princípio da virtude republicana é o mesmo, como é o mesmo o princípio de condenação, a mera suspeita.
Com isto não me estou a tornar advogado dos adeptos dos burkini e das burkas. Estou a mostrar que se chegou a uma situação paradoxal: para defendermos os nossos valores atacamos um dos nossos valores essenciais e raiz de todos os outros, a liberdade. Se permitirmos a liberdade de cada um vestir o que entende, uma parte dos cidadãos – as mulheres muçulmanas que não querem de livre vontade usar este tipo de indumentária – pode ser coagida a fazê-lo por familiares ou pela comunidade onde se insere, pois a República é virtuosa mas não tem meios para fazer cumprir a lei. Se se proíbe certo tipo de indumentária sem que ela ponha causa a liberdade a segurança de terceiros, então não respeitamos a própria liberdade. Seja qual for a solução adoptada, os valores ocidentais perdem sempre.
Esta situação remete-nos para o paradoxo do multiculturalismo referido em crónica de António Guerreiro, no Público. Stanley Fish defende que o “multiculturalismo é uma impossibilidade lógica”. A explicação pode ler-se no texto de António Guerreiro (para ler a argumentação de Fish ir para a jstor). O que me interessa sublinhar, porém, é o perigo que tudo isto representa. O perigo deriva da incapacidade da razão encontrar um caminho para a resolução destas situações de conflito cultural. O paradoxo revelado por Stanley Fish mostra-nos um limite da razão. Quando a razão falha – e mesmo quando, por vezes, não falha – a saída para os problemas na vida em sociedade torna-se irracional, isto é, comprometida por emoções e sentimentos, os quais facilmente conduzem à violência.
Na actual situação, há todo um trabalho de pensamento - encontrar uma saída para o paradoxo - a fazer para evitar que as sementes de violência, já lançadas, não brotem vigorosas da terra. O que está a ser testado, em todo este processo, é a pretensão à universalidade dos princípios que o Ocidente tem sido porta-voz e a capacidade de encontrar um caminho para partilhá-los. Neste momento, a França enredou-se de tal modo que as soluções que adopta são aquelas que reforçam a posição identitária dos muçulmanos. O problema é de difícil solução. Nem a tarefa teórica nem a tarefa prática parecem fáceis, antes pelo contrário. A situação mostra que o caminho que está pela frente é árduo, muito árduo e de resolução intrincada, se a tiver. O pior, porém, que pode acontecer é entregar o assunto ao sentimento e à emoção, venham estes disfarçados de ideologia multicultural ou de devaneios identitários. É preciso pensar para agir. Fundamentalmente, é preciso não deixar que princípios e valores universais da razão se deixem arrastar, por inabilidade ou por impotência, para o particularismo identitário.
Um árduo caminho
Opinião » 2016-08-18 » Jorge Carreira MaiaO caso dos burkinis é interessante porque torna a posição das autoridades francesas muito frágil, se se tiver um conta os próprios padrões ocidentais...
A proibição do uso de burkinis em algumas praias francesas, bem como o apoio que o primei-ministro Manuel Valls tem dado às decisões dos presidentes de câmara, torna evidente que a Europa – a França em particular – está perante um problema de enorme complexidade. Esta complexidade deriva de um choque entre duas visões culturais sobre o que é o comportamento adequado na vida social. O choque, todavia, não fica por aí, pois a situação leva a um conflito no interior dos próprios valores ocidentais. O caso dos burkinis é interessante porque torna a posição das autoridades francesas muito frágil, se se tiver um conta os próprios padrões ocidentais, e mostra bem que estamos numa situação onde não há soluções pré-fabricadas e prontas a aplicar.
Vale a pena ler a argumentação transcrita de Valls para perceber que ela omite duas questões essenciais. A primeira diz respeito ao facto de poderem existir mulheres que, sem qualquer coacção externa, queiram adoptar, por um acto livre, esse tipo de vestuário. Em segundo lugar, o uso do burkini não significa que as usuárias estejam a infringir o secularismo do Estado. Um Estado secular não implica que as pessoas não possuam crenças religiosas e que, em sociedade, se comportem em conformidade com as suas crenças, desde que essas pessoas não interfiram na liberdade das outras.
A França perante o problema posto pela presença do Islão poderia lidar com ele de dois pontos de vista. Valorizar a liberdade negativa. Cada um vive como entende, desde que não infrinja a liberdade de terceiros. Isto significaria valorizar o indivíduo e os seus direitos e liberdades. Significaria ainda que o Estado deveria punir todos os actos que atentassem contra essa liberdade negativa, incluindo aqueles que se passam nas comunidades e famílias muçulmanas. Isso exigiria pôr de lado o multiculturalismo e, acima de tudo, um longo e exaustivo trabalho policial, talvez impossível de realizar.
A França optou por manter-se fiel à sua tradição. Evoca a virtude republicana: o uso do burkini como da burka “não é compatível com os valores da França e da República”. E acrescenta Valls que “a República deve defender-se”. O problema é que as autoridades francesas agem segundo o princípio da suspeita. Suspeitam, como o diz a ministra para os direitos das mulheres, que se pretende “esconder os corpos das mulheres para que possam ser controlados”. Esta é a velha tradição que vem da época do Terror, da Revolução Francesa. Perante a suspeita da falta de virtude republicana, os jacobinos entretinham-se a decapitar pessoas. Hoje a França é civilizada, não usa a guilhotina, mas o princípio da virtude republicana é o mesmo, como é o mesmo o princípio de condenação, a mera suspeita.
Com isto não me estou a tornar advogado dos adeptos dos burkini e das burkas. Estou a mostrar que se chegou a uma situação paradoxal: para defendermos os nossos valores atacamos um dos nossos valores essenciais e raiz de todos os outros, a liberdade. Se permitirmos a liberdade de cada um vestir o que entende, uma parte dos cidadãos – as mulheres muçulmanas que não querem de livre vontade usar este tipo de indumentária – pode ser coagida a fazê-lo por familiares ou pela comunidade onde se insere, pois a República é virtuosa mas não tem meios para fazer cumprir a lei. Se se proíbe certo tipo de indumentária sem que ela ponha causa a liberdade a segurança de terceiros, então não respeitamos a própria liberdade. Seja qual for a solução adoptada, os valores ocidentais perdem sempre.
Esta situação remete-nos para o paradoxo do multiculturalismo referido em crónica de António Guerreiro, no Público. Stanley Fish defende que o “multiculturalismo é uma impossibilidade lógica”. A explicação pode ler-se no texto de António Guerreiro (para ler a argumentação de Fish ir para a jstor). O que me interessa sublinhar, porém, é o perigo que tudo isto representa. O perigo deriva da incapacidade da razão encontrar um caminho para a resolução destas situações de conflito cultural. O paradoxo revelado por Stanley Fish mostra-nos um limite da razão. Quando a razão falha – e mesmo quando, por vezes, não falha – a saída para os problemas na vida em sociedade torna-se irracional, isto é, comprometida por emoções e sentimentos, os quais facilmente conduzem à violência.
Na actual situação, há todo um trabalho de pensamento - encontrar uma saída para o paradoxo - a fazer para evitar que as sementes de violência, já lançadas, não brotem vigorosas da terra. O que está a ser testado, em todo este processo, é a pretensão à universalidade dos princípios que o Ocidente tem sido porta-voz e a capacidade de encontrar um caminho para partilhá-los. Neste momento, a França enredou-se de tal modo que as soluções que adopta são aquelas que reforçam a posição identitária dos muçulmanos. O problema é de difícil solução. Nem a tarefa teórica nem a tarefa prática parecem fáceis, antes pelo contrário. A situação mostra que o caminho que está pela frente é árduo, muito árduo e de resolução intrincada, se a tiver. O pior, porém, que pode acontecer é entregar o assunto ao sentimento e à emoção, venham estes disfarçados de ideologia multicultural ou de devaneios identitários. É preciso pensar para agir. Fundamentalmente, é preciso não deixar que princípios e valores universais da razão se deixem arrastar, por inabilidade ou por impotência, para o particularismo identitário.
Eleições "livres"... » 2024-03-18 » Hélder Dias |
Este é o meu único mundo! - antónio mário santos » 2024-03-08 » António Mário Santos Comentava João Carlos Lopes , no último Jornal Torrejano, de 16 de Fevereiro, sob o título Este Mundo e o Outro, partindo, quer do pessimismo nostálgico do Jorge Carreira Maia (Este não é o meu mundo), quer da importância da memória, em Maria Augusta Torcato, para resistir «à névoa que provoca o esquecimento e cegueira», quer «na militância política e cívica sempre empenhada», da minha autoria, num país do salve-se quem puder e do deixa andar, sempre à espera dum messias que resolva, por qualquer gesto milagreiro, a sua raiva abafada de nunca ser outra coisa que a imagem crónica de pobreza. |
Plantação intensiva: do corte à escovinha e tudo em fila aos horizontes metalificados - maria augusta torcato » 2024-03-08 » Maria Augusta Torcato Não sei se por causa das minhas origens ou simplesmente da minha natureza, há em mim algo, muito forte, que me liga a árvores, a plantas, a flores, a animais, a espaços verdes ou amarelos e amplos ou exíguos, a serras mais ou menos elevadas, de onde as neblinas se descolam e evolam pelos céus, a pedras, pequenas ou pedregulhos, espalhadas ou juntinhas e a regatos e fontes que jorram espontaneamente. |
A crise das democracias liberais - jorge carreira maia » 2024-03-08 » Jorge Carreira Maia A crise das democracias liberais, que tanto e a tantos atormenta, pode residir num conflito entre a natureza humana e o regime democrático-liberal. Num livro de 2008, Democratic Authority – a philosophical framework, o filósofo David. |
A carne e os ossos - pedro borges ferreira » 2024-03-08 » Pedro Ferreira Existe um paternalismo naqueles que desenvolvem uma compreensão do mundo extensiva que muitas vezes não lhes permite ver os outros, quiçá a si próprios, como realmente são. A opinião pública tem sido marcada por reflexões sobre a falta de memória histórica como justificação do novo mundo intolerante que está para vir, adivinho eu, devido à intenção de voto que se espera no CHEGA. |
O Flautista de Hamelin... » 2024-02-28 » Hélder Dias |
Este mundo e o outro - joão carlos lopes » 2024-02-22 Escreve Jorge Carreira Maia, nesta edição, ter a certeza de que este mundo já não é o seu e que o mundo a que chamou seu acabou. “Não sei bem qual foi a hora em que as coisas mudaram, em que a megera da História me deixou para trás”, vai ele dizendo na suas palavras sempre lúcidas e brilhantes, concluindo que “vivemos já num mundo tenebroso, onde os clowns ainda não estão no poder, mas este já espera por eles, para que a História satisfaça a sua insaciável sede de sangue e miséria”. |
2032: a redenção do Planeta - jorge cordeiro simões » 2024-02-22 » Jorge Cordeiro Simões
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Avivar a memória - antónio gomes » 2024-02-22 » António Gomes Há dias atrás, no âmbito da pré-campanha eleitoral, visitei o lugar onde passei a maior parte da minha vida (47 anos), as oficinas da CP no Entroncamento. Não que tivesse saudades, mas o espaço, o cheiro e acima de tudo a oportunidade de rever alguns companheiros que ainda por lá se encontram, que ainda lá continuam a vender a sua força de trabalho, foi uma boa recompensa. |
Eleições, para que vos quero! - antónio mário santos » 2024-02-22 Quando me aborreço, mudo de canal. Vou seguindo os debates eleitorais televisivos, mas, saturado, opto por um filme no SYFY, onde a Humanidade tenta salvar com seus heróis americanizados da Marvel o planeta Terra, em vez de gramar as notas e as opiniões dos comentadores profissionais e partidocratas que se esfalfam na crítica ou no elogio do seu candidato de estimação. |
» 2024-02-28
» Hélder Dias
O Flautista de Hamelin... |
» 2024-03-08
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